O ciclo de ascensão, plenitude e declínio acompanha o processo de evolução das espécies e o ciclo de desenvolvimento das civilizações. Todo ciclo ascendente atinge um zênite antes do colapso. Os dinossauros dominaram o Planeta, antes de serem extintos. Os Impérios Persa, Egípcio, Romano, Maia, Austro-Húngaro, Soviético, dentre outros, colapsaram depois de atingirem o auge civilizacional.
A civilização urbano-industrial, energizada pelos combustíveis fósseis, vive sua fase de plenitude após 250 anos do início do seu ciclo ascendente. Nunca na história da humanidade o progresso econômico e social foi tão grande. Como enaltece um colunista arquiconservador (e provocador) do jornal Folha de São Paulo:
“Em números relativos ou absolutos, nunca antes na história deste mundo, tantos homens viveram sob regime democrático, os seres humanos tiveram vida tão longa, houve tanta comida e tão barata, tivemos tantos remédios para nossos males, houve tantas crianças com acesso à educação, houve tantos humanos com saneamento básico… O repertório, em suma, nunca foi tão grande para responder aos desafios que nos propõem a natureza e a civilização” (Azevedo, FSP, 22/08/2014).
De fato, segundo Angus Maddison, a esperança de vida ao nascer do mundo era de apenas 24 anos no ano 1000 da Era Cristã. Nos países ocidentais (Europa Ocidental e Estados Unidos) a esperança de vida passou para 36 anos em 1820, 46 anos em 1900 e 79 anos em 2006. No resto do mundo a esperança de vida ao nascer chegou a 26 anos em 1900, 44 anos em 1950 e 64 anos em 2006. Na média mundial a esperança de vida ao nascer está em torno de 70 anos, o que é um fato absolutamente extraordinário.
De fato, segundo o Banco Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a humanidade avançou muito nos últimos 250 anos, especialmente nos últimos 30 anos, possibilitando a redução da pobreza e o aumento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O número de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza (com menos de US$ 1,25 ao dia) era de 1,938 bilhão (representando 43% da população mundial) em 1981 e caiu para 1,2 bilhão em 2010 (17,6% do total). O IDH mundial era de 0,561 en 1980, passou para 0,639 em 2000 e chegou a 0,694 em 2012. Isto significa que houve aumento da renda, da educação e da esperança de vida da população global.
Ou seja, a média mundial já ultrapassou dois terços do caminho para chegar ao IDH de valor máximo.
Concomitantemente ao processo de redução da pobreza e crescimento do IDH, houve um processo de crescimento das camadas médias da sociedade. O Relatório de Desenvolvimento Humano 2013, apresentado pelo PNUD mostra que, até 2030, o mundo deve conseguir um rápido aumento da classe média (pessoas com renda entre 10 e 100 dólares por dia, em poder de paridade de compra). E o maior crescimento deve ocorrer nos países do Sul Global (emergentes). Em 2009, a classe média global era de 1,845 bilhão de indivíduos, o que representava 27% da população mundial de 6,8 bilhões de habitantes. As projeções do PNUD indicam uma classe média global de 3,2 bilhões de pessoas em 2020, representando 42% da população mundial de 7,7 bilhões de habitantes. Para 2030, as projeções indicam uma classe média global de 4,88 bilhões de pessoas, representando 59% da população mundial de 8,3 bilhões de habitantes. Ou seja, em meados da década de 2020, a classe média global poderá ser maioria da população mundial.
Contudo, esse quadro otimista traçado pelos organismos internacionais e pelos defensores do modelo capitalista de produção tem como base as tendências do passado e podem não se repetir no futuro. Além da tendência à “Estagnação secular” à redução das taxas de crescimento econômico, há duas grandes fraquezas que tornam todo o sistema vulnerável, como o calcanhar de Aquiles. Pequenos pontos frágeis podem derrubar sólidas construções.
As desigualdades sociais, regionais e nacionais são a primeira grande fragilidade do sistema. Como mostrou Thomas Piketty, professor na Escola de Economia de Paris, no recente e já famoso livro “Capital in the Twenty-First Century” (2014), a renda do minúsculo grupo dos “1%” mais ricos da sociedade continua crescendo acima daquela dos demais grupos sociais e demonstra a verdadeira história da ascensão da desigualdade. De acordo com a Oxfam, as 85 pessoas mais ricas do globo têm propriedades no valor de US$ 1,7 trilhão, o que equivale ao patrimônio das 3,5 bilhões de pessoas mais pobres do mundo, sendo que a riqueza do 1% dos mais ricos equivale a um total de US$ 110 trilhões, 65 vezes a riqueza da metade mais pobre da população e quase metade da riqueza total do Planeta.
O relatório sobre a riqueza global, em 2014, do banco Credit Suisse (The Credit Suisse Global Wealth Report 2014) mostra um quadro bastante amplo e esclarecedor da má distribuição da riqueza (patrimônio) das pessoas adultas do mundo. A riqueza global foi estimada em USD$ 263 trilhões em 2014. O número de pessoas adultas no mundo estava em 4,7 bilhões em 2014. Na base da pirâmide da desigualdade, em 2014 estão 3,28 bilhões de pessoas com a riqueza abaixo de 10 mil dólares (69,8%). O montante da “riqueza” deste enorme contingente foi de USD$ 7,6 trilhões, o que representava somente 2,9% da riqueza total. Ou seja, pouco mais de dois terços (2/3) dos adultos do mundo possuiam somente 2,9% do patrimônio global da riqueza em 2014.
No grupo de riqueza entre USD$ 10.000,00 e USD$ 100.000,00 havia 1,010 bilhão de adultos em 2014, o que representava 21,5% do total de pessoas na maioridade no mundo. O montante de toda a riqueza deste contingente intermediário foi de USD$ 31,1 trilhões, o que representava 11,8% da riqueza global. No grupo de riqueza entre USD$ 100.000,00 (cem mil dólares) e USD$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares) havia 373 milhões de adultos em 2014, o que representava 7,9% do total de pessoas na maioridade no mundo. O montante de toda a riqueza deste contingente intermediário foi de USD$ 108,6 trilhões, o que representava 41,3% da riqueza global. O grau de concentração da riqueza fica claro quando somamos os dois grupos superiores da pirâmide, aqueles com riqueza acima de 100 mil dólares, pois havia um total de 408 milhões de adultos (8,7%), com patrimônio total de USD$ 224,5 trilhões, representando 84,7% da riqueza global em 2014. Na parte de baixo da pirâmide, os 4,3 bilhões de adultos, representando 92,3% das pessoas, detinham somente 15,3% da riqueza mundial em 2014.
Essa profunda desigualdade de renda e de riqueza é uma bomba-relógio que só não explode na medida em que o crescimento econômico mundial consegue reduzir a pobreza absoluta e manter uma chama de esperança na possibilidade de inclusão no mercado de consumo. Mas, no longo prazo, é impossível se manter um crescimento infinito num planeta finito. Não sem motivo, é cada vez maior a literatura que trata do “fim do crescimento econômico” e do processo de “estagnação secular”. O modelo atual, assim como uma bicicleta, só se mantém de pé em movimento. Movimento de expansão que é incompatível com os limites naturais do Planeta e com a 2ª Lei da Termodinâmica (“a quantidade de trabalho útil que se pode obter a partir da energia do universo está constantemente diminuindo”). O pico do petróleo e o abismo energético são duas realidades que colocam em xeque o contínuo crescimento demoeconômico da modernidade. Na plenitude do ciclo de expansão, a sinergia se transforma em entropia. Sem crescimento econômico, o desemprego, a perda do poder aquisitivo, a favelização e a insegurança alimentar tendem a elevar os conflitos sociais e as revoluções populares.
A segunda grande fragilidade do atual sistema de produção e consumo (quer seja capitalista ou socialista) advém da insustentabilidade ecológica da civilização urbano-industrial.
Nos últimos dois séculos, enquanto os indicadores humanos melhoravam (a despeito das desigualdades sociais), a situação ambiental na Terra piorava. Na medida em que o número de indivíduos da espécie crescia e as atividades antrópicas aumentavam, o grau de dominação e exploração da natureza, a biodiversidade e as áreas selvagens do mundo caminhavam em sentido contrário, perdendo espaço e direitos enquanto a civilização urbano-industrial se tornava onipresente em meio a um ambiente natural degradado.
As áreas de florestas foram as primeiras a sofrerem os efeitos da produção industrial em massa. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o ritmo do desmatamento, devido ao uso de áreas florestais para fins agrícolas, foi de 14,5 milhões de hectares por ano entre 1990 e 2005. Entre 2005 e 2010 o ritmo de destruição foi um pouco menor, mas o planeta perdeu, em média, 4,9 milhões de hectares de floresta por ano no período. Isso significou 10 hectares de desmatamento por minuto.
A destruição dos habitates tem provocado a extinção de algo entre 10 a 30 mil espécies por ano. O ser humano está provocando, em um curto espaço de tempo, a sexta extinção em massa no planeta. Isto acontece em função dos impactos da perda da fauna devido ao empobrecimento da cobertura vegetal, à falta de polinizadores, ao aumento de doenças, à erosão do solo, aos impactos na qualidade da água, etc. Os Tigres, os Leões, as Onças, os Gorilas e tanto outros animais que vivem na Terra muito antes do homo sapiens estão ameaçados de extinção.
Para alimentar uma população crescente de seres humanos mais de 60 bilhões de animais terrestres são mortos todos os anos e a escravidão animal é responsável pelo confinamento de 19 bilhões de galinhas, 1,4 bilhão de bovinos, 1 bilhão de porcos, 1 bilhão de ovelhas e um número considerável de outros animais. O sofrimento imposto às outras espécies é imenso. Além disto, o boi e a vaca, por exemplo, são animais ruminantes cujo processo digestivo provoca uma fermentação que faz o animal liberar muito gás metano. O metano é o segundo gás que mais contribui para o efeito estufa, sendo 21 vezes mais poluente do que o gás carbônico (CO2).
Enquanto a pecuária amplia o domínio sobre a vida animal, a agricultura também desmata e revolve as terras, ampliando o uso de fertilizantes e agrotóxicos. Especies invasoras substituem a vegetação original. O CO2, o nitrogênio, o fósforo, o potássio e o zinco, além de diversos produtos químicos, são importantes elementos utilizados para aumentar a produtividade agrícola, mas criam uma rede de poluição que provoca a degradação do solo, a perda de qualidade do ar e da água e a extinção de espécies.
Os rios foram desviados, represados, assoreados e degradados. A poluição dos rios reduz a disponibilidade de água doce, diminui o oxigênio e provoca a mortandade de peixes. Aquíferos fósseis estão desaparecendo e os aquíferos renováveis não estão conseguindo manter os níveis de reposição dos estoques, reduzindo a capacidade de carga. A maioria da sujeira dos solos e dos rios corre para o mar. Assim, os oceanos do mundo estão se tornando mais ácidos em consequência da poluição dos rios e da absorção de 26% do dióxido de carbono emitido na atmosfera, afetando tanto as cadeias alimentares marinhas quanto a resiliência dos recifes de corais. Se a acidificação dos oceanos continuar, é provável que haja alterações nas cadeias alimentares bem como impactos diretos e indiretos sobre diversas espécies. A sobrepesca fez com que 85% de todos os estoques de peixes fossem atualmente classificados como sobre-explorados, esgotados, em recuperação ou totalmente explorados.
O aumento das emissões de gases de efeito estufa tem provocando o aquecimento global, tendo como consequência o derretimento das geleiras e das camadas de gelo, provocando escassez de água potável e o aumento do nível dos oceanos. Os últimos dados mostram que a concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera ficou durante todo o mês de abril de 2014 acima das 400 partes por milhão (ppm), algo que não acontecia há pelo menos 800 mil anos. Como consequência, a elevação do nível do mar ameaça a existência de países como Tuvalu e pode alagar áreas densamente povoadas. A elevação do nível do mar já prejudica os deltas dos principais rios do mundo. Artigo de James Syvitski e co-autores, “Naufrágio dos deltas devido às atividades humanas” (Sinking deltas due to human activities), publicado na Revista Nature Geoscience, em 2009, mostra como o delta de vários rios importantes do mundo estão afundando devido às atividades antrópicas, com perdas de áreas férteis.
Ou seja, a sociedade urbano-industrial tem possibilitado a expansão da produção e do consumo, mas às custas de uma crescente desigualdade social e da degradação continua dos ecossistemas. Essas duas grandes vulnerabilidades podem provocar o colapso do sistema. A vulnerabilidade interna decorre das desigualdades sociais (de classe, gênero, raça, geração e de distribuição espaço-geográfica). A arquitetura social pode desmoronar quando as camadas de baixo se recusarem a sustentar a elite do alto da pirâmide da riqueza global. A vulnerabilidade externa decorre da falta de bases ecológicas para manter o modelo “Extrai-Produz-Descarta” que caracteriza o “fluxo metabólico entrópico”, provocado pelas atividades antrópicas da sociedade urbano-industrial.
O rumo atual de crescimento da civilização urbano-industrial é insustentável e a complexidade do atual modelo está aumentando os custos e reduzindo os benefícios, jogando a economia em uma grande armadilha sem bases sociais e ambientais de sustentação. Em um mundo globalizado e profundamente marcado pela injustiça social, a possibilidade de um colapso atual, ao contrário daqueles ocorridos no passado, deixaria de ser localizado e poderia abarcar todas as atividades humanas que não estiverem em equilíbrio homeostático e simbiótico com a natureza.
Referências:
ALVES, JED. O crescimento da classe média no mundo segundo o PNUD. EcoDebate, RJ, 28/03/2013
ALVES, JED. “Agequake”: um bilhão de idosos até 2020 e 3 bilhões até 2100. EcoDebate, RJ, 24/01/2014
ALVES, JED. Dia Mundial do Meio Ambiente: vergonha de ser humano. EcoDebate, RJ, 04/06/2014
ALVES, JED. O colapso das sociedades complexas. EcoDebate, RJ, 24/09/2014
ALVES, JED. A pirâmide global da riqueza e o aumento da desigualdade. EcoDebate, RJ, 22/10/2014
Ron Patterson, Collapse is Inevitable. Peak Oil. July 19, 2014
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
Fonte: http://www.ecodebate.com.br/2014/12/17/o-colapso-da-civilizacao-urbano-industrial-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
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