OS PIORES PONTOS DO NOVO CÓDIGO FLORESTAL (PROJETO DE LEI Nº 1.876-E DE 1999)
Análise Técnica da Sociedade Chauá*
12 de maio de 2012
Art. 3º inciso IV: define 22 de julho de 2008, como data limite para caracterização das áreas consolidadas que deveriam ser áreas de preservação permanente (APPs). Esta data se refere à nova versão da Lei de Crimes Ambientais (LCA), que já valia desde 12 de fevereiro de 1998. São 10 anos de ocupação ilegal, sabendo-se que estas áreas deveriam ter sido preservadas. Agora, ao invés de cobrar as sanções previstas na lei atual e exigir a restauração das APPs ocupadas, propõe-se o absurdo de legalizar estas ocupações. Além disso, para evitar transgressões ainda maiores, é obrigatório constar no texto a forma pela qual deverá ser comprovado o desmate e ocupação até a data definida, sendo imperativo um laudo técnico baseado na comparação entre fotografias aéreas e/ou imagens de satélite de diferentes datas.
Art. 3º inciso X alínea J: define exploração agroflorestal e manejo florestal sustentável como atividades de baixo impacto. Tecnicamente o manejo florestal sustentável pode ser considerado como menos impactante, mas a exploração agroflorestal é bastante impactante, por favorecer erosão, assoreamento e contaminação dos rios, além de comprometer demasiadamente a estrutura da floresta. De qualquer forma, tendo em vista sua função ecológica, em APP não se pode permitir nenhuma das duas atividades. Na Reserva Legal (RL) o manejo florestal sustentável pode ser permitido.
Art. 3º inciso XI: trata da definição de pousio, que ocorre quando determinada área agrícola é deixada sem uso para que possa recuperar suas condições de solo, para uso futuro. Sem a declaração do início do pousio e sem um limite temporal, (por exemplo, 5 ou 8 anos), qualquer área abandonada em APP, inclusive com floresta no estágio inicial, poderá ser declarada como sendo de pousio e servir para qualquer propósito inclusive para exploração imobiliária, com corte da vegetação, pois o inciso IV deste mesmo artigo, admite áreas de pousio como sendo áreas consolidadas.
Art. 3º Parágrafo único: neste parágrafo se inclui QUALQUER imóvel de até 4 módulos na mesma categoria da pequena propriedade /posse da agricultura familiar (definição no inciso V). O diferencial do agricultor familiar é que sua subsistência depende essencialmente de sua propriedade, o que não acontece em todos imóveis de até 4 módulos, mesmo que desenvolvam atividades agropastoris. Com esta inclusão, proprietários de chácaras de lazer, especuladores imobiliários e grandes proprietários que tenham várias áreas de pequena dimensão passarão ter as mesmas condições especiais que os pequenos proprietários da agricultura familiar, aspecto claramente injusto e que demonstra os verdadeiros beneficiados com o novo código florestal. É importante ressaltar que a lei atual prevê condições especiais APENAS para o pequeno agricultor familiar.
Art. 4º inciso I: define o leito da calha regular do rio como parâmetro para a medição das APPs. Isso vai diminuir em muito, as áreas protegidas. Considerar a calha do leito maior é tecnicamente única possibilidade razoável, pois desta forma assegura-se a conservação da qualidade e quantidade de água disponível, além do controle de inundações, sendo estes pontos fundamentais para a segurança e qualidade de vida do ser humano.
Art. 4º § 3º: considera as várzeas como não sendo APP. Este dispositivo é inaceitável por legalizar o uso indiscriminado de ambientes úmidos extremamente frágeis. As várzeas ocorrem sobre solos hidromórficos e se constituem de nascentes difusas, permanecendo úmidas durante todo o ano ou boa parte deste; são fundamentais para a manutenção da água em qualidade e quantidade; sua vegetação higrófila absorve determinados metais pesados, além de fixar os gases de efeito estufa; são essenciais no controle das enchentes, desacelerando a velocidade da água, e auxiliam na reposição das águas subterrâneas, fundamentais para o estoque de água doce. A utilização de áreas de várzea pode ser admitida apenas para casos específicos, mas como regra geral estes ambientes devem permanecer como APP. A inclusão das veredas como APP como prevê o projeto de lei, reforça esta posição, uma vez que veredas e várzeas são apenas expressões florísticas distintas de uma mesma situação ambiental.
Art. 4º § 3º: considera os salgados e apicuns como não sendo área de preservação permanente. Este dispositivo é muito prejudicial por separar os salgados e apicuns do conceito de manguezal, considerando que são todos diferentes expressões de vegetação fluviomarinha. Retirar salgados e apicuns do conceito de APP significa reduzir significativamente a proteção dos berçários marinhos, com sérias repercussões para a produtividade pesqueira e a biodiversidade costeira.
Art. 4º § 6º: permite que em qualquer propriedade de até 15 módulos, em beiras de rios, lagos e lagoas, possam ser implantadas atividades de aquicultura e sua infraestrutura correspondente. Note-se que o artigo não se refere a atividades já consolidadas, ou seja, permite que permanentemente, áreas de preservação possam ser utilizadas para estas atividades. Não existe justificativa técnica para a escolha de propriedades com até 15 módulos. Este dispositivo abre possibilidade para o desmatamento indiscriminado de Mata Ciliar. A liberação deste tipo de intervenção deve ser avaliada dentro de um licenciamento específico.
Art. 7º § § 1º e 3º: dispõe sobre a supressão da vegetação em APP, obrigando a sua recomposição, mas em momento algum faz referência às sanções administrativas, civis e penais cabíveis, nem menciona a LCA.
Art. 8º § 2º: permite a ocupação de restingas e manguezais por população de baixa renda, se a função ecológica destas áreas estiver comprometida. É importante ressaltar que estas áreas são declaradas como sendo APPS no art. 4º incisos VI e VII e, assim sendo, devem ter sua função ecológica restaurada. São de importância fundamental para a manutenção da biodiversidade e proteção da costa contra marés de tempestade e furacões, não devendo haver ocupação humana, dados os riscos de vida e de prejuízo material. Este conteúdo é perverso, pois é só passar com um trator numa área destas e já se pode declarar que sua função está comprometida!
Art. 15: permite o cômputo de APPs no cálculo do percentual de Reserva Legal para qualquer imóvel, impondo condições insuficientes (incisos I, II e III). Não há restrição ao tamanho do imóvel, nem à extensão de APPs nele existentes, aspectos corretamente considerados na legislação atual. A abertura perniciosa dada nesta reformulação do código florestal vai gerar uma diminuição drástica de áreas protegidas, sem justificativa técnica.
Art. 18 § 4º: desobriga a averbação da RL em Cartório de Registro de Imóveis. Sabendo-se que infelizmente a corrupção e as manobras para benefício próprio são uma rotina consagrada no Brasil, a averbação em cartório é fundamental e obrigatória para a manutenção efetiva da Reserva Legal.
Art. 41 § 1º: prevê meios de incentivar atividades necessárias à regularização de imóveis rurais. No inciso II permite que quem desmatou ilegalmente antes de 2008, possa deduzir no Imposto de Renda, parte dos gastos despendidos na recomposição; no inciso III, permite o acesso a créditos dos fundos públicos para a recuperação e recomposição de APPs e RL. A escolha da data já é injustificável, e os privilégios concedidos são injustos com relação àqueles que preservaram ou recompuseram suas APPs e RLs e pagaram suas multas nos termos da lei atual. É privilégio e anistia para os infratores, mas quem cumpriu a lei não recebe benefício algum, e o povo ainda vai pagar a recomposição das APPs de infratores, inclusive de latifundiários!
Art. 42: prevê a conversão (isenção) de multas estipuladas pelo Decreto 6.514/2008, que correspondem a R$ 5.000,00 por hectare ou fração de vegetação nativa ou de espécies nativas plantadas destruídas ou danificadas, sem autorização ou licença (quando na Mata Atlântica, é acrescido o valor de R$ 500,00 por hectare). É importante ressaltar que este decreto teve como objetivo dar força à LCA de 12 de fevereiro de 1998, que veio sendo ignorada sistematicamente. É fácil compreender que os proprietários em situação ilegal logo se alertaram com o conteúdo deste decreto, motivando a escolha desta data para legalizar todas as infrações até então cometidas e se isentarem das multas! É um longo tempo de impunidade, onde todos sabiam que deveriam recompor e recuperar suas áreas e preservação, mas não o fizeram.
Art. 51: se refere à situação onde o órgão ambiental competente toma conhecimento de um desmatamento em desacordo com a lei, e tem como única obrigação, promover o embargo da ação e propiciar a regeneração da área degradada. Em nenhum momento se fala nas sanções cabíveis de acordo com a LCA.
Art. 54: se refere ao plantio de espécies exóticas em RL, mencionando que o benefício abrange apenas a propriedade de agricultor familiar, no entanto o art. 3º § único estende o tratamento dado ao agricultor familiar a qualquer propriedade de até 4 módulos com atividades agrossilvipastoris. Portanto, qualquer propriedade de até 4 módulos, independente do poder aquisitivo de seu proprietário, poderá usar espécies exóticas na RL. Este benefício deve ser concedido apenas para o agricultor familiar e, além disso, é necessário que conste a ressalva de que as espécies exóticas utilizadas não sejam invasoras, para impedir a degradação por contaminação biológica. Note-se que no art. 66 § 3º, o benefício do uso de exóticas na recomposição da RL, é dado também aos proprietários de áreas consolidadas. Ou seja, mais um prêmio para o infrator.
Art. 59 § 5º: se refere ao fato de que as multas (art. 42), serão convertidas em serviços de preservação e recuperação da qualidade do meio ambiente. Note-se que a manutenção de APP e RL é obrigatória, e que aqueles que não se preocuparam com isto são infratores. O cumprimento da exigência agora e a isenção das multas, é no mínimo totalmente injusta com aqueles que agiram de acordo com lei, considerando ainda que as áreas a serem recuperadas serão menores, conforme se verá mais adiante.
Art. 61: reitera a permissão da continuidade das atividades agrossilvipastoris, de turismo rural e de ecoturismo em APPs consolidadas, até julho de 2008. No § 4º se permite a manutenção destas atividades na beira dos rios com largura de até 10 metros, independente do tamanho da propriedade, obrigando a recomposição das faixas marginais em apenas 15 metros contados da calha do leito regular. Este conteúdo é dos mais perniciosos; note-se que a malha dos rios menores é imensa no Brasil, que estes rios e suas margens são ambientes ricos em biodiversidade; que estudos apontam que a faixa mínima de vegetação beira-rio para evitar a contaminação da água com insumos agrícolas é de 30 m; que o parâmetro da calha do leito regular é perverso por não proteger as planícies de inundação e legalizar a ocupação de áreas de risco, expondo as comunidades a prejuízos econômicos e risco de vida. Na prática, isto significa que as APPs de grande parte dos rios de até 10 metros serão de 15 m e não de 30 m, consolidando uma enorme diminuição das áreas a serem protegidas. Também deixa totalmente em aberto o que será feito nas margens dos rios acima de 10 m. Note-se ainda que quem ocupou estas áreas infringindo a lei vigente, terá isenção das sanções previstas na LCA, poderá ter deduções no IR, de recursos aplicados na recomposição e acesso a fundos públicos para recompor suas áreas de preservação, e além de tudo isso ainda poderá recompor apenas 50% da área prevista por lei e manter e lucrar com as atividades nos outros 50%; definitivamente se constitui em uma injúria. O § 5º prevê que a exigência da recomposição a que se refere o § 4º, não ultrapassará o limite da RL estabelecida para o respectivo imóvel, quando somadas as demais áreas de preservação permanente. A redação deste parágrafo é confusa, mas de qualquer forma não se vê justificativa para a vinculação desta recomposição já facilitada, com o restante das APPs. O § 6º obriga a recomposição de apenas 30 metros no entorno de nascentes, permitindo a manutenção das atividades agrossilvipastoris, de turismo rural e de ecoturismo nos 20 m restantes que deveriam ser também APP. Privilegiar a manutenção destas atividades, ao invés de priorizar a proteção dos recursos hídricos, é irresponsável. Sabe-se que a água é fundamental para a manutenção de qualquer atividade humana, inclusive para as atividades agrossilvipastoris. Portanto este dispositivo é injustificável e pernicioso, devendo ser mantidos os 50 m conforme a lei vigente para qualquer imóvel, antes ou depois de 22 de julho de 2008.
Art. 63: permite em áreas consolidadas, a manutenção de atividades florestais e de infraestrutura associada às atividades agrossilvipastoris em topos de morro, encostas acima de 45º de declividade, bordas de tabuleiros e áreas com altitude acima de 1800 m; o pastoreio extensivo também é permitido nas regiões de vegetação campestre das áreas acima mencionadas (§ 1º).
No § 3º se permite atividades agrossilvipastoris em bordas de tabuleiros e chapadas. É preciso esclarecer que a pecuária extensiva, que muitas vezes é improdutiva, é um risco para estas regiões que são instáveis e frágeis, favorecendo a erosão. Já espécies lenhosas perenes como café e maçã, são menos impactantes e poderiam ser mantidas dentro de certos critérios e com acompanhamento de órgão ambiental competente, contemplando principalmente o pequeno agricultor. Mais uma vez a proposta de novo código florestal transforma exceções em regra, ameaçando a sustentabilidade ambiental do País.
Art. 67: permite que propriedades que detinham até 22 de julho de 2008, área de até 4 módulos fiscais, e que possuíam vegetação nativa em percentuais inferiores ao previsto no art. 12, passem a considerar como RL apenas a vegetação remanescente na propriedade. Novamente se legaliza diminuição de áreas protegidas, independente do poder aquisitivo do proprietário, além da insistência nesta data equivocada. A interpretação deste artigo leva a crer que um aglomerado de 10 árvores pode ser averbado como RL! É uma afronta ao art. 12 da própria Lei! Também é gerada insegurança jurídica, pois não se menciona qual o procedimento nas propriedades que não tenham nenhum remanescente de vegetação nativa. Esta flexibilização poderia ser concedida apenas para o pequeno produtor familiar, atrelado a dispositivos que valorizassem aqueles que respeitaram os limites mínimos do art. 12.
Estes são os pontos considerados mais perversos e de maior impacto. No entanto, na análise completa há muitos outros pontos negativos. Todos estes conteúdos irão contribuir com menor proteção ambiental, menor recomposição de áreas que deveriam ser de preservação, negligenciando os recursos hídricos e dando incentivos indiretos ao desmatamento e à destruição da vegetação. De modo geral pode-se dizer que o infrator ambiental é privilegiado com benefícios e abrandamento das regras, e que o agricultor familiar, simplesmente foi usado como desculpa para justificar esta reformulação tendenciosa que beneficia em muito, os grandes latifundiários. Reitera-se que a preocupação com o pequeno produtor é mais do que justa, e que os benefícios, com algumas ressalvas, contidos neste projeto devem sim, ser aplicados, mas somente a ele, pois sua subsistência está vinculada a sua propriedade, ao contrário dos proprietários de terra que não necessitam da propriedade para sobreviver. Ressalta-se ainda que a maior parte dos benefícios ao pequeno agricultor familiar constantes neste projeto de lei já estão contemplados na legislação atual.
O VETO TOTAL é imperativo porque há muitos conteúdos negativos, frequentemente vinculados entre si, fazendo com que o veto parcial seja ineficiente para garantir uma proteção eficaz dos recursos naturais necessários à sobrevivência e qualidade de vida do ser humano.
* Christopher T. Blum, Eng. Florestal, Msc., Doutor em Conservação da Natureza; Christiane Tigges, Médica, Analista Ambiental; André C. F. Sampaio, Eng. Florestal, Msc., Doutorando em Geografia.
info@chaua.org.br / www.chaua.org.
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