domingo, 7 de dezembro de 2014

Contra as mudanças climáticas, uma nova primavera silenciosa

A

O mais importante na luta contra as mudanças climáticas não é a energia: é o poder. As inúmeras tentativas de contornar esta constatação nua e crua, por meio de soluções candidamente batizadas de ganha-ganha, pela utilização de mecanismos que não ameacem os interesses dos responsáveis pela destruição e pelo gradualismo que acompanha estas tentativas estão nos levando ao fechamento das portas que poderiam manter a temperatura global média num patamar de aumento compatível com a vida civilizada.

contra-mudancas-climaticas-uma-nova-primavera-silenciosa-140A direita radical norte-americana, que encara o aquecimento global como uma espécie de conspiração comunista, tem sido capaz de colocar o dedo na ferida de forma mais contundente que o cavalheirismo dos diferentes segmentos progressistas na abordagem das mudanças climáticas: a regeneração do sistema climático não se fará sem o enfrentamento dos interesses que hoje comandam a organização econômica global. Daí vem a contraposição que dá título ao mais recente livro de Naomi KleinThis Changes Everything – Capitalism Versus The Climate*. A humanidade tem que escolher entre o capitalismo e o clima.
Mas se esta é a escolha, por que razão dizer, como o faz Klein, que “isso muda tudo”? Afinal, desde, no mínimo, meados do Século XIX movimentos sociais colocaram o capitalismo em questão por meio de palavras de ordem como socialismo ou barbárie. Se é assim, por que, como propõe o título do livro, “tudo muda”? As três partes desta obra, cuja importância foi comparada por um articulista do New York Times, à da Primavera Silenciosa de Rachel Carson, nos ajudam a responder a esta pergunta.
A primeira mudança está na magnitude da ameaça e no poder dos interesses que lhe são subjacentes. Nos últimos 25 anos, as emissões aumentaram nada menos que 60%. Embora parte cada vez maior deste aumento venha da China e da Índia, não passa de mito o caminho supostamente benigno de transição representado pelofraturamento hidráulico na obtenção de gás nos Estados Unidos. Estudos recentes mostram que, além da poluição local, estas novas técnicas causam emissões de metano, que permanece na atmosfera por prazo muito superior a outros gases de efeito estufa e cujos impactos são comparáveis aos do mais sujo dos combustíveis fósseis, o carvão. Fazer da exploração destrutiva de shale gas o emblema do pouso suave em direção à economia descarbonizada é apenas um entre inúmeros exemplos, citados na primeira parte do livro, do esforço atual de que “os responsáveis pela crise não se sintam ameaçados pelas soluções”.
Em outras palavras, “isso não é inovação, é loucura”, afirma Klein. Ainda mais quando se leva em conta que, tecnicamente, já existem condições de que o mundo caminhe para 100% de energias renováveis em 2030. O livro cita inúmeros estudos empíricos corroborando este horizonte. Mas os interesses fósseis suscitam investimentos que superam de longe o esforço necessário para uma infraestrutura da descarbonização. E estes interesses não vêm apenas do setor privado: parte importante da exploração fóssil vem de empresas pertencentes a Estados, muitos dos quais sob uma orientação redistributiva, a partir de um discurso de esquerda. Mesmo sendo um ícone da esquerda global contemporânea, Naomi Klein não hesita em caracterizar as práticas destes Estados como “extrativismo progressista” e os batiza como “esquerda extrativista”.
Mas além de parte expressiva da esquerda latino-americana, os interesses fósseis impõem-se, cada vez mais, a algumas das mais importantes ONGs e personalidades ambientalistas globais. A segunda parte do livro de Naomi Klein faz um levantamento impressionante desta relação promíscua que vai desde os investimentos fósseis de muitos fundos mantenedores de ONGs, até alianças com empresas petrolíferas em nome de uma transição supostamente viável para a economia de baixo carbono. “Isso muda tudo”, na segunda parte do livro, volta-se a uma cuidadosa desconstrução do esforço de atenuar os impactos das mudanças climáticas sem que sejam alterados os padrões de produção e consumo do mundo atual. As tentativas de encontrar soluções de mercado para reduzir as emissões tiveram, até aqui, resultados pífios, embora tenham mobilizado parte significativa do esforço e do prestígio político de várias organizações e personalidades globais.
Mas se é assim, se os Estados contemporâneos progressistas estão comprometidos com os interesses extrativistas e se a maior parte das ONGs adotou a realpolitik de uma narrativa complacente com os interesses dominantes, de onde pode vir a força política capaz de regenerar o clima e recuperar as condições para uma vida civilizada no Planeta? O que muda, aqui, na visão de Klein, é que as organizações representativas tradicionais (a começar por partidos e sindicatos) desempenham papel quase irrelevante neste processo.
A energia social capaz de “mudar tudo” está nas ruas, na mobilização social de massa, num termo (Blockadia) que parece ter emergido nas manifestações contra o oleoduto destinado a transportar o petróleo de areias betuminosas do Canadá até os EUA. Esta energia está presente nas manifestações contrárias à exploração petrolífera na reserva natural de Yasuni no Equador e na vitória dosOgoni, na Nigéria contra ninguém menos que a Shell.Klein oferece um panorama impactante destes movimentos ao redor do mundo, na terceira parte do livro.
As mudanças necessárias para a regeneração do sistema climático só são historicamente comparáveis às que foram alcançadas com o fim da escravidão. Num caso e no outro, é possível identificar claramente os interesses e as perdas potenciais caso estes interesses sejam seriamente contestados. Klein cita estudos segundo os quais os escravos representavam 16% da riqueza norte-americana em meados do Século XIX. Esta proporção do PIB norte-americana, nos dias de hoje, corresponderia a US$ 10 trilhões: é uma estimativa do montante que perderiam os gigantes fósseis caso se decidisse deixar sob o solo (e sob o mar) a o patrimônio de que eles são proprietários. Isso só nos EUA.
Naomi Klein é persuasiva no ceticismo com relação às soluções diplomáticas e, sobretudo, àquelas incapazes de enfrentar os interesses fósseis. Ela oferece ao leitor um levantamento precioso de rebeliões atuais contra o extrativismo e postula que só movimentos sociais de massa podem nos salvar. Mas sua conclusão principal – de que estes movimentos são uma espécie de embrião com potencial transformador semelhante ao do abolicionismo – é, não há como não o reconhecer, a parte menos convincente deste livro fundamental.
*Ricardo Abramovay leu This Changes Everything – Capitalism Versus The Climate em inglês. O livro ainda não foi traduzido para o português.
Foto: United Nations Photo/Creative Commons e reprodução da capa do livro

Fonte: http://planetasustentavel.abril.com.br/blog/muito-alem-da-economia-verde/contra-as-mudancas-climaticas-uma-nova-primavera-silenciosa/?utm_source=redesabril_psustentavel&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_psustentavel_muitoalemdaeconomiaverde

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