quarta-feira, 12 de outubro de 2011


Fiocruz debate desafios do Protocolo de Nagoia

Mariana Lemie, da Agência Fiocruz de Notícias
Foto: Peter Ilicciev
crédito carbono
Índio conhece a planta e seu efeito. Branco chega, aprende, pilha e bye bye. No laboratório no além-mar, desenvolve cosméticos caros para um mercado em expansão.
Nem lembra do índio, que precisa de saúde. Para mudar o cenário de biopirataria e exploração da riqueza natural por quem detém capital e tecnologia sem dividir o resultado com as sociedades dos locais de origem, foi aprovado, em outubro de 2010, no Japão, o Protocolo de Acesso e Repartição de Benefícios advindos da biodiversidade, ou Protocolo de Nagoia. Assinado por 64 países na 10ª Conferência das Partes (COP-10) da Convenção sobre Diversidade Biológica, o Protocolo de Nagoia precisa da ratificação de 50 países para entrar em vigor, mas ainda não foi ratificado por nenhum. Primeiro, porque ele deve se combinar com as leis dos países, o que não é simples. Além disso, afeta diversos setores, como saúde e agricultura, e levanta novas questões.
Para estimular o debate, a Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, por meio do Centro Colaborador Opas/OMS em Saúde Pública e Ambiente, e a Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde do Ministério da Saúde promoveram na quinta-feira (6 /10), no Museu da Vida, o seminário Protocolo de Nagoia e Saúde: Buscando Novos Rumos para a Sustentabilidade. A atividade faz parte dos preparatórios da Fiocruz para a Rio + 20, em junho de 2012.
O seminário foi aberto pela vice-presidente de Pesquisa e Laboratórios de Referência da Fiocruz, Claude Pirmez. O diplomata Eduardo Botelho Barbosa, da Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde, coordenou a primeira mesa, sobre aspectos legais do protocolo. A palestrante Larissa Maria Lima, do Departamento de Meio Ambiente e Temas Especiais do Ministério das Relações Exteriores (Dema/MRE), lembrou que a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados do uso de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados é um dos três pilares da Convenção da Diversidade Biológica (CDB) – os outros dois são a conservação da biodiversidade e o uso sustentável dos seus componentes.
A CDB foi adotada na Rio 92 e está em vigor desde 1993. O Brasil ratificou convenção em 1994, mas só em 1998 ela entrou na legislação. Larissa contou que no caso do Protocolo de Nagoia o Brasil foi um dos primeiros a assinar, participando de uma negociação muito dura e representando o bloco dos países subdesenvolvidos. Larissa observou que os dois documentos afirmam que a autoridade sobre material genético e recursos biológicos pertence aos países e está sujeita às leis nacionais. “Todo acesso precisa ser feito com consentimento prévio do provedor dos recursos – o governo nacional – e o conhecimento deve ser compartilhado com os países provedores, transferindo tecnologia e promovendo a utilização sustentável”, explicou.
O Protocolo de Nagoia aplica-se aos recursos genéticos, aos benefícios derivados da utilização desses recursos e também à utilização do conhecimento tradicional associado a eles. Para ela, o protocolo é um passo muito importante e espera que possa estar em vigor na próxima COP, na Índia em outubro de 2012. Eliana Maria Gouveia Fontes, do Departamento de Patrimônio Genético da Secretaria de Biodiversidade e Florestas discutiu a internalização do Protocolo. Ela contou que desde a adoção da CDB pelo Brasil começou-se a tratar de um projeto de lei sobre repartição de benefícios. A MP 2186-16 foi reeditada 16 vezes, e a última versão, de 2001, é a que vale hoje.
Eliana explicou que a legislação prevê que a autorização das pesquisas seja feita pelo CGEN, com termo de anuência prévia da comunidade provedora, para garantir que seus direitos sejam preservados. O Contrato de Utilização de Patrimônio genético e Repartição de Benefícios (Curb) deve envolver o titular da área pública, o proprietário da área privada e representantes da comunidade indígena ou do órgão indigenista que a represente, da comunidade local, da instituição autorizada e da destinatária. Segundo Eliana, hoje a falta de regulamentação internacional penaliza as instituições nacionais que não tem alcance ao que é desenvolvido internacionalmente a partir do que foi coletado aqui. “Nagoia muda esse cenário. Quando for ratificado, os benefícios dos recursos pesquisados no exterior e transformados em produtos terão que ser repartidos. É um instrumento de grande importância para nós”, destacou.
Para Eliana, o cenário desejado no âmbito regulatório nacional é de estímulo à pesquisa e desenvolvimento e valorização dos conhecimentos tradicionais. “Há 220 comunidades indígenas, 180 línguas. É preciso haver um diálogo maior para promover o uso adequado destes recursos para melhorar qualidade de vida dos índios. Os antropólogos estudam de um lado e empresas que pesquisam de outro. É preciso construir pontes para caminhos justos e sustentáveis”, disse.
Na contramão do pensamento reinante no seminário, Leontino Rezende Taveira, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), problematizou o Protocolo de Nagoia, questionando as consequências possíveis do controle acesso aos recursos genéticos no contexto alimentar. Segundo ele, a alimentação no Brasil depende de 85% a 90% de recursos genéticos de outros países. De vegetais a animais, quase tudo que ingerimos tem sua origem genética no exterior. Segundo ele, na balança entre o que receberíamos e o que teríamos que pagar, sairíamos muito deficitários.
Leontino descreveu o marco internacional em vigor hoje o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Agricultura e Alimentação (TIRFAA), que abarca todos os recursos genéticos usados em agricultura e alimentação. Segundo ele, o tratado busca melhorar os direitos de melhorista e do agricultor de livremente intercambiar sementes, como fazem há milhares de anos. “Os desafios são manter o preço baixo, garantir segurança alimentar e promover políticas públicas para a diversificação dos cultivos”, disse.
Ele contou que existe um “pool gênico global”, vigiado pela FAO, que fornece recursos genéticos. O software Gene-it tem um banco de germoplasma com informações genéticas e gera um contrato padrão. No Brasil, o serviço é administrado pela Embrapa. Para solicitar recursos, é preciso acessar http://tirfaa.cenargen.embrapa.br. O assesor do Mapa explicou que quem recebe livremente não pode proteger o recurso com patente e só pode usar para usos agrícolas e de alimentação. “O intercâmbio de materiais é uma forma relevante de repartição de benefícios, repartindo também o resultados dos estudos”, sugeriu.
Na parte da tarde, Ana Maria Tapajós, da Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde do MS, levantou questões associadas aos reflexos do protocolo na Saúde. Ana partiu do fato que cada Estado possui o direito soberano de explorar seus próprios recursos. Para ela, a saúde deve se orientar por uma lógica ambiental e se incluir nas discussões, porque o cenário interfere no acesso a resultados de pesquisa sobre doenças de origem brasileira (patógenos), no acesso a medicamentos e vacinas obtidos pelo uso da biodiversidade, no aproveitamento nacional do conhecimento tradicional aplicado e na maior inserção de pesquisadores/instituições brasileiros no contexto internacional.
Entre os desafios a serem trabalhados, ela cita a caracterização do acesso a patógenos. "Pode ser feito diretamente a partir do ser humano, sem retirada e isolamento do patógeno? Pode se dar por transferências? Como evitar que se perca o controle do uso e de transferências posteriores?", questionou. Ana acrescentou outros aspectos a serem discutidos: como contribuir para preservar o conhecimento tradicional; como manter a gestão do recurso; como monitorar fidelidade ao uso autorizado; que políticas de publicação podem garantir que se mantenha a gestão do recurso; como fazer o patenteamento; como impedir a transferência não autorizada a terceiros; e como contribuir para o monitoramento e o controle. Segundo Ana, só 17 países são megadiversos, e o Brasil é um deles. "Precisamos fazer com que o nosso patrimônio genético tenha o seu valor cada vez mais reconhecido e respeitado", disse.
A pesquisadora Márcia Chame, coordenadora do programa de Biodiversidade e Saúde da Presidência da Fiocruz, falou sobre o desafio institucional de implantar o regime de acesso, uso e repartição de benefícios da biodiversidade e do conhecimento tradicional a ela associado. Ela ressaltou que a Fiocruz está envolvida com essas questões há muito tempo, desde a Rio 92. Além de ter uma vice-presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde, está representada no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) do Ministério do Meio Ambiente e no Conselho Nacional de Biodiversidade.
"O mundo está mudando rápido em relação a esse tema, que é complexo, mas a instituição está acompanhando e participando do processo. Precisamos nos capacitar não só na área de pesquisa, que aporta resultados, mas na negociação de contratos, nas intervenções, nas relações com povos indígenas. Precisamos nos estruturar, porque a legislação é rígida e precisa ser cumprida, então devemos fazer da melhor forma, buscar caminhos simplificados", recomendou. Segundo Márcia, todos os eixos estratégicos da Fiocruz têm a ver com a questão: desenvolvimento tecnológico, fortalecimento do SUS, política de plantas medicinais, taxonomia, prospecção, entre outros. "O processo faz parte da nossa missão institucional. Precisamos assumir isso", defendeu.

Pedro Canísio Binsfeld, da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, abordou a internalização no âmbito do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético e o papel da saúde. Esta foi a segunda edição do seminário. A primeira foi realizada na Fiocruz Brasília, em 23 de agosto, e reuniu especialistas da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS), Fiocruz e ministérios da Saúde, Agricultura e Meio Ambiente.

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