quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Saneamento ecológico - recurso por água abaixo

article-image

Se estamos falando de escassez de água no planeta, por que então usamos tão mal este recurso? Não estamos falando aqui da notoriedade do desperdício nas redes furadas das empresas de saneamento, nem dos sistemas hidráulicos abertos do setor industrial ou agroindustrial – que têm perdas de 40% ou mais – e muito menos do pobre indivíduo que é responsabilizado pelos males do planeta ao tomar um banho mais demorado. Estamos falando de usar água potável para levar para algum lugar longe da gente a urina e as fezes que produzimos todo santo dia.

A invenção do vaso sanitário como o conhecemos – com descarga hídrica – data do século XVIII, e está intimamente ligada à urbanização e ao crescimento das cidades. Era uma necessidade, aliás estamos sempre falando de necessidades.
Mas, no início do século XXI, a inovação quatrocentenária nos traz um problema complexo, pois as ligações entre o esgotamento sanitário, meio ambiente e saúde são cada vez mais fortes. O dilema que enfrentamos hoje é o seguinte: não parece sustentável um sistema que limpa a água para que ela esteja disponível para lavar os dejetos, voltando depois ao sistema para ser limpa e reiniciar o ciclo.
É esta irracionalidade que motiva muitos acadêmicos. No Brasil, agregados em cerca de 10 grupos de pesquisas reconhecidos pelo CNPq, eles buscam alternativas ao esgotamento sanitário centralizado – os que contam com extensas redes de tubos subterrâneos distribuidores e coletores de água e esgoto.
“Em diversas universidades, em países desenvolvidos e em desenvolvimento, o investimento em pesquisa está sendo ampliado com o objetivo de desenvolvimento de alternativas aos modelos atuais que utilizam água potável para diluir e transportar fezes até o rio”, explicou Marcelo Nolasco, Coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa “Água, Saneamento e Sustentabilidade” – GEPASS do CNPq/USP.
Estas pessoas vislumbram um outro jeito de lidar com o dejeto nosso de cada dia,  em alternativas denominadas como saneamento ecológico ou descentralizado, tecnologias muitas vezes mais simples,  mas que hoje, podem ser consideradas inovações se usadas de acordo com as diversas conjunturas regionais.
“É cada vez mais comum o entendimento de que esta não é uma solução universal e nem a mais apropriada para as diferentes realidades e regiões do planeta, ainda que haja algum grau de tratamento antes do despejo”, explicou Nolasco.
As evidências pesam contra o atual sistema centralizado.
Um dado revelador ajuda a pensar: 1,5% de toda a energia consumida no Brasil é usada pelas redes de saneamento básico, incluindo distribuição, água e tratamento de esgoto. Cerca de 90% desta energia é usada para bombear a água dos reservatórios para as cidades e garantir o abastecimento de água potável paras as residências. Desta água potável que ‘compramos’, cerca de 14% é usada apenas para jogar fezes e urinas nas redes de esgoto. E pior: apenas cerca de 62% deste esgoto é coletado e, do que é coletado, só 38% é tratado.
Ou seja, com o consumo médio do brasileiro girando em torno de 150 litros diários, todos os dias cada pessoa despeja 21 litros nos vasos sanitários. Porém, a maior parte (62%) desta água não volta para o sistema: ela vai direto para o mar, os rios, os riachos e os lagos. Fazendo as contas de uma pessoa que tem banheiro à disposição, dos 21 litros que ele usa para limpar seus excrementos pessoais, só oito litros são tratados e voltam para o sistema (a um custo é claro) e os restantes 13 litros são jogados, todos os dias, sujo, nos cursos de água e não voltam para o sistema, forçando as empresas a captar cada vez mais água para garantir o abastecimento.
Em um ano, estamos falando de 4.742 litros de água por pessoa que é ‘jogado fora’. Para o Brasil com acesso a coleta de esgoto, ou seja 62% de uma população de 200 milhões, dos quais 62% não são tratados, então falamos de mais de 365 bilhões de litros por ano que são usados em vasos sanitários e não voltam para o sistema.
Com uma estimativa de custo de tratamento por litro de R$0,000094 em uma estação de esgoto, então seriam necessários cerca de R$34 milhões por ano só para deixar esta água limpa apenas para lavar dejetos, sem calcular as perdas do sistema e o esgoto que não é tratado e sai do sistema. Só em infraestrutura para aumentar a coleta e tratamento do esgoto para 62%, sem contar a operação do sistema, o Plansab prevê R$160 bilhões em 20 anos.

Urbanização e cultura

Os banheiros, até pouco mais de 40 anos atrás, eram bem diferentes dos que são usados pela maioria da população urbana brasileira hoje. O uso da descarga, inserida no sistema de coleta e tratamento de esgoto, somente foi implantado em larga escala a partir da década de 70.
Marta Arretche, cientista política que já foi pesquisadora do Núcleo de Estudos e Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), escreveu em um de seus artigos que a partir da década de 60, com o crescimento da urbanização a taxas de 5,2% ao ano, o número se refletiu na década seguinte em mais de 20 milhões de pessoas que trocaram o campo pelas cidades.  
Assim,  as ‘casinhas’ (nome comumente usado pelos moradores da zona rural para referirem-se a banheiro) foram substituídas pelo aperto concentrador entre concreto e asfalto das cidades e suas privadas.
De onde vinham, as pessoas retiravam água de poços e ‘davam um jeito’ de se livrar de suas necessidades fisiológicas usando banheiros construídos fora das casas, sobre as fossas negras.
A relação dos dejetos não tratados em áreas pouco populosas mostrava que a natureza era capaz de dar conta. O mesmo não é possível para uma população crescente como a que vive hoje nas cidades.
“Diversos estudos mostram que o solo, dada a riqueza de microrganismos, possui uma capacidade mais elevada de promover a degradação destas substâncias que a água”, explicou Mariana Chrispim, Mestranda em Saúde Ambiental – Faculdade de Saúde Pública da USP.
Para ela, que se dedica a viabilizar um projeto de reúso de urina como biofertilizante, as barreiras que envolvem o uso em larga escala de soluções ligadas ao saneamento ecológico, passam por aspectos culturais e psicológicos. O projeto dela usa banheiros secos que coletam a urina para ser usada como biofertilizante (um aparte importante, o mictório seco que ela usa para os testes são importados da Europa, pois não há fabricantes nacionais).
A mentalidade urbana, principalmente, tende a rejeitar os banheiros secos”, analisou. “As pessoas ligam o banheiro com descarga à ideia de civilização de luxo. E isto não está correto e não é sustentável. Além disso, temos que lidar com o receio de usar estes compostos na agricultura.”
Se não existem fazendas em um ambiente urbano, há jardins. Mas ainda há a desconfiança de contaminação. Pesquisas internacionais, no entanto, estão sendo realizadas para detectar alguns micropoluentes na urina, como resíduos de medicamentos e hormônios que possam causar efeitos adversos à saúde das pessoas. No entanto, esta preocupação não é decorrente só da aplicação de urina no solo, pois estes também são geralmente detectados em corpos d’água devido ao despejo de esgoto sem o tratamento necessário para sua remoção (o tratamento convencional não remove estas substâncias).
Existe ainda um outro fator que é o costume do uso da água sem pensar no ciclo hidráulico.
“Para grande parte da população urbana a tarifa mensal não representa um custo proibitivo. Estes fatores contribuem para o comportamento perdulário, ampliando-se o desperdício”, afirmou Nolasco.

Biodigestor como fonte de renda

Um outro caminho é o uso de biodigestores, mais comuns para processar dejetos de animais em áreas rurais, que hoje podem aliar o saneamento diretamente com outra necessidade básica: a energia. Um projeto da usina hidrelétrica de Itaipu demonstra que o tratamento de esgoto pode ter outra finalidade, que não somente a de limpar a água e prevenir doenças.
A empresa implantou uma tecnologia de uso de biodigestores para cerca de 30 pequenas fazendas no município paranaense de Marechal Rondon. As propriedades produzem metano a partir de esterco animal, coletado em uma pequena rede de gasodutos que ligam as unidades formando o ‘condomínio agroenergético’ Ajuricaba, o nome do rio local.
Os produtores conseguem gerar eletricidade e, por meio de acordos com a Companhia Paranaense de Energia Elétrica (Copel), conseguem vender a R$134 por MWh (energia eólica tem um preço de cerca de R$100/MWh), gerando uma receita mensal para os agricultores de cerca de R$2,5 mil com a venda de energia excedente após consumir o que necessita.
Já para o pesquisador da Embrapa, Wilson Tadeu Lopes da Silva, coordenador do projeto de fossa séptica biodigestora, as fezes humanas também podem ser utilizadas como fonte de geração de renda, ao se tornarem resíduos transformados em biofertilizantes.
Para ele, a perspectiva com relação ao desenvolvimento e implantação de alternativas ecológicas de saneamento no Brasil é muito boa.
“Existe um trabalho que mostra que cada real investido na Fossa Séptica Biodigestora retorna para a sociedade, R$ 4,60 por conta da diminuição do uso de sistema de saúde pública, aumento da produtividade do agricultor – já que ficará menos doente, aumento da produtividade agrícola, entre outros fatores, ressalta”.
O sistema criado pela Embrapa possibilita a reciclagem agrícola do efluente tratado (biofertilizante), economizando água e fertilizante mineral, aumentando a produtividade agrícola sem custo adicional para o agricultor.
O custo dos equipamentos e da instalação varia entre R$ 1.300,00 a R$ 1.500,00 de materiais, sendo que a instalação pode ser feita pelo próprio agricultor.
Mas o sucesso da disseminação depende de um trabalho conjunto de diversos atores.
“Neste momento está sendo discutido o plano nacional de saneamento básico (Plansab), estando incluso o Programa Nacional de Saneamento Rural, onde se espera que estes critérios sejam discutidos e acertados”, aponta o pesquisador.
De toda forma, obter rendimento com “produtos” de um vaso sanitário não pode ser taxado como má ideia. Se hoje podemos gerar nossa própria eletricidade, reciclar nosso próprio lixo, por que não podemos tratar nosso próprio esgoto?

fonte: revistasustentabilidade.com.br/saneamento-ecologico-recursos-por-agua-abaixo/#more-114102

Nenhum comentário:

Postar um comentário