Analista da Fundação France Libertés - Brésil
No mês passado, na penúltima reunião das negociações realizadas em Nova York com vistas à RIO+20, os grupos da sociedade civil que trabalham pelo Direito à Água descobriram com pasmo que alguns países da União Europeia conspiram para apagar sistematicamente do “Rascunho Zero” toda menção ao Direito à Água, assim como outras menções aos Direitos Humanos e Sociais, como o Direito à Soberania Alimentar, o Direito das Mulheres e os Direitos dos Povos Autóctones.Quando o “Rascunho Zero” da Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável, chamada RIO+20, foi publicado em Janeiro, recebemos com satisfação a clara menção ao Direito à Água mencionada no Parágrafo 67, o capítulo mais importante nesse texto para todos aqueles que militam e trabalham pelo direito universal à água potável. Claro que sabíamos que esta primeira versão do texto deveria ser revisto, e palavras e conceitos removidos ou corrigidos pelos Estados-membros. No entanto, as organizações sociais mobilizadas para o tema não poderiam imaginar que os governos liberais e os mercadores da água preparavam uma ofensiva para deletar e limitar toda menção ao direito à água no texto base para a Declaração da RIO+20.Presentes em Nova York em Março para a penúltima rodada de negociações oficiais na ONU, os grupos da sociedade civil envolvidos nas negociações puderam comprovar que alguns poucos países – pressionados pelos defensores de seus interesses financeiros – vêm trabalhando sistematicamente para apagar ou contornar qualquer menção sobre o direito à água do texto da RIO+20. Mais amplamente, esse mesmo grupo de países se empenha também em atacar outras referências aos direitos humanos e sociais, como o direito à soberania alimentar, os direitos das mulheres e os direitos dos povos indígenas.Os argumentos daqueles que estão se opondo ao direito à água – União Europeia, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Israel e Nova Zelândia, assim como dos grupos empresariais que tem cadeira nos Major Groups – é que a RIO+20 é uma oportunidade para fazer avançar a chamada “Economia Verde” e, portanto, não é o lugar para falarmos sobre direitos ou proteção do meio ambiente, mas sobre financiamento e investimentos, através da valorização do “Capital Natural” e da criação de novas oportunidades para o mercado.Três anos após o colapso do Banco Lehman Brothers e do caso Madoff, quando pudemos ver mais de perto os excessos e derivas do mercado financeiro desregulado, é no mínimo curioso ver os Estados se lançarem com tal apetite sobre as soluções para o acesso à água baseadas em mecanismos de mercado. As organizações da sociedade civil mobilizadas para a Cúpula dos Povos por justiça social e ambiental na RIO+20 – assim como a maioria das organizações sociais presentes nas negociações em Nova York – se opõem e condenam esse ataque frontal contra o direito à água – um principio legal aprovado em Julho de 2010 pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Denunciamos também de forma mais abrangente o ataque sistemático contra os direitos humanos e sociais que testemunhamos nas negociações em Março na ONU, sob argumento de que precisamos avançar “concretamente” e que para isso temos que remover as barreiras e as regulações que impedem o avanço do livre comércio e do mercado “verde”.Para entender melhor o que se esconde por trás desta ainda obscura e já polêmica “Economia Verde”, transcrevo, a seguir, trechos de um recente discurso de Willem Buiter, Diretor do setor financeiro do Citigroup, publicado no Financial Times: “Espero ver em breve uma expansão maciça do investimento no setor da água, incluindo a produção de água potável de várias fontes diferentes como purificação e dessalinização, assim como o armazenamento e o transporte de água. Espero ver sistemas de aquedutos que excedam a capacidade de transporte de petróleo e gás dos dias de hoje (…) Vejo frotas de petroleiros e instalações de armazenamento muito além dos que temos atualmente para o petróleo, gás natural e GNL. Vejo sistemas de tubulação e redes para o transporte de água, com a ambição e a escala dos que estão atualmente em curso na China, ligando o Rio Yangtze, no Sul do Rio Amarelo, ao Norte árido da China. (…) Espero ver um mercado mundial integrado de água potável nos próximos 25 a 30 anos.(…) Pois uma vez que os mercados de água serão integrados, produtos financeiros e outros derivativos indexados sobre a água vão seguir – swaps, derivativos, fundos de ações – tanto negociados na bolsa tradicional como em mercados futuros. Haverá diferentes qualidades e tipos de água doce, exatamente como temos petróleo “light sweet crude” e “heavy”. A água como “asset”de ativos financeiros será, na minha opinião, base para os produtos financeiros mais importantes, superando o petróleo, o cobre, as commodities agrícolas e os metais preciosos.”No mínimo preocupante, senão assustadora, a visão cínica dos grandes especuladores que perderam com a quebra da bolha imobiliária e financeira e que agora querem avançar sobre o chamado “Capital Natural”. Para isso, precisamos dar preço aos “serviços” da água como um primeiro passo, afastando o fantasma dos direitos humanos e da regulação dos Estados e logo criar nos próximos anos o que Mr. Buiter chama de “mercado unificado da água”.A historia do grande financista do Citi seria anedótica se fosse isolada, mas infelizmente estamos vendo grandes bancos e corporações transnacionais se lançando muito seriamente nesta empreitada. No ultimo Fórum Mundial da Água, em Marselha, foi igualmente radical o discurso do Presidente da Nestlé, Peter Brabeck. Segundo ele, somente as grandes corporações podem garantir o financiamento para o acesso à água, e por isso devem ter total liberdade e apoio dos Estados e da ONU para decidir como fazê-lo.Mesmo se naturalmente aprovamos a transição ecológica em direção a uma economia de baixo carbono e ambientalmente menos agressiva, e sabemos que para isso teremos que contar com a responsabilidade e participação do setor privado, não podemos aceitar que a RIO+20 entre para a historia como a consagração do domínio dos mercados financeiros e do setor privado sobre os bens comuns essenciais à vida.Como declarava a hoje saudosa Danielle Mitterrand, o tempo vai dizer quais foram os homens políticos que tomaram as decisões que estão levando a humanidade para um beco sem saída. Diante da visão fatalista dos mercados financeiros, temos que agir com urgência para construirmos um espaço político e social que promova outra visão do nosso elemento vital: a água como principio da vida, como bem comum da humanidade que deve permanecer livre de interesses privados e gerenciado para o beneficio geral. Esperamos que o tempo não seja curto demais para que nossa sociedade e nossos lideres compreendam que alguns poderosos interesses financeiros se escondem por trás do belo conceito de “Economia Verde”.Texto elaborado por André Abreu e Emmanuel Poilâne de France Libertés
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