sexta-feira, 20 de abril de 2012


Vivências de Florêncio de Carvalho no coração da floresta

Por Flamínio Araripe
amazônia
Um dos cearenses mais inteligentes que já conheci, Florêncio de Carvalho, aos 17 anos, foi deixado pelo barco sozinho num seringal da Amazônia onde viveu 16 anos, sem sair. A floresta, a vida vegetal e animal que habita o meio, o cosmo onde a mata vive, ao longo deste tempo foram um livro aberto onde ele absorveu a experiência transformada em conhecimento.

Em sua homenagem - hoje ele faz 80 anos de vida - amigos sentaram em volta dele com um gravador e mestre Florêncio contou as histórias do seringal. O resultado foi publicado no livro "No Coração da Floresta - Vivência de um Caboclo na Amazônia", edição do autor, editado em Brasília, em 2006. Merece uma reedição, e até mesmo ser distribuída nas escolas da Amazônia.
A seguir, alguns trechos do livro deste cidadão do mundo, uma das pessoas que conhecem a linguagem da floresta amazônica e os mistérios da natureza, decifrados no dia a dia da convivência nos desafio colocados pela realidade cotidiana:

Uns versinhos feitos por mim:

A vida do seringueiro
é uma vida aperreada.
Que dorme pouco de noite
e acorda de madrugada
Corre, pula, salta e cansa,
e dá cochilo na estrada.
A roupa do seringueiro,
é uma coisa de se fazer rir.
De estopa, uma calça velha,
melada de sernambi


Sernambi é resto de borracha, aquele grude que fica. A roupa fica de um jeito que pesa mais de 5 a 6 quilos uma camisa. Quando não estava pelado.

NA ÉPOCA EM QUE EU SAÍ DOS SERINGAIS

Na época, começou a tecnologia aparecendo pelo Brasil. Aí o patrão botou um prêmio para o seringueiro que conseguisse botar maior quantidade de borracha. Tinha três prêmios: primeiro, segundo e terceiro lugar. Quem tirasse o último lugar ganhava uma saia preta. O primeiro lugar era um rádio Transglobo; o segundo era uma espingarda e o terceiro era uma festa. Matava um boi e fazia uma festa. Eu tirei o primeiro lugar no seringal.

Aí ganhei um rádio Transglobo de oito pilhas. Botaram uma antena lá em cima dos galhos de pau, e eu comecei pegando uma estações, a Voz da América, Transmundial, Tupi. E comecei a ficar doido para sair dos seringais. Porque o patrão não deixava sair. Se fugisse, ele mandava matar.

Aí. nós fizemos um projeto, um plano, para sair do seringal. Saímos seis pessoas, cinco homens e uma mulher. Passamos todo um dia dentro de um pequeno riacho, não podia sair. Quase que a gente morre. As unhas quase caem. Passamos todo um dia andando dentro do mesmo riacho, até sair muito em cima. Pegamos a terra firme, e vamos s’embora. Era para o cachorro não encontrar o faro da gente. E assim, saímos. Saímos das águas do rio Purus, afluente do rio Ituxi, e formos sair nas águas do rio Abunã, que despeja no rio Madeira. De um lado é Bolívia, e do outro Brasil.

Deixamos o rádio, passei para outro cara. A gente levava só munição, sal e farinha para um macaco, alguma coisa, e comia.

Ficamos trabalhando alguns dias nos seringais de lá, e de lá fomos para Porto Velho. Fui para Porto Velho, depois voltei e passei outros dias na Bolívia.

Quando eu saí dos seringais em 1964, e vim pra cidade, pensei que estava todo mundo doido. Quando eu cheguei naquela região ali, nem carro tinha pelas ruas. Aí já tinha muito carro na rua, tinha rádio. Televisão foi nos anos 60. Achei a cidade muito esquisita. Ainda hoje, moro numa cidade mas não acho muito bom. Quando estou perto da natureza, me sinto quase em casa. Dentro de cidade, principalmente cidade grande, não gosto. Por isso que estou pensando seriamente em sair um dia de Manaus. Manaus já é uma cidade de mais de 2 milhões de habitantes. Eu estou a fim de morar num lugar pequeno, onde eu possa estar mais em contato com a natureza.

TRABALHANDO DE NOTEIRO

Numa época, tive de trabalhar de noteiro. O barracão fornece mantimentos e compra a borracha. Os seringueiros moram numa distância muito grande. De dois em dois meses, ou de mês em mês, vai o noteiro saber o que os seringueiros estavam precisando. O noteiro adoeceu. E não tinha uma pessoa para ir. O cara disse pra mim:
- Quem tem que ir é tu.
- Rapaz, eu não sei ler. - eu disse.
- Dá o teu jeito, faz sinal, o que tiver.
Eu levava o papel, a caderneta. Aí o cara dizia “tantos quilos de feijão” e eu botava o número, a quantidade de quilos e desenhava tipo um carocinho de feijão, de um caroço de arroz, e fazia os traços de todas as coisas. Quando chegava, passava para eles aqueles sinais todos, ele passava para a caderneta e mandava. Geralmente, não faltava nada. Eu inventava uma série de coisas na cabeça, tipo símbolo e código.
Fazia isso com 50 a 100 seringueiros, com cada um fazia diferente. Levava só o número da colocação dele e já sabia qual era o seringueiro. Fiz isso só umas três vezes.

COMO É A ORIENTAÇÃO DO CABOCLO NA FLORESTA - O SOL

Às vezes, a pessoa pode se perguntar como o caboclo faz para se orientar na floresta. O caboclo não tem uma bússola, um instrumento, a aparelhagem sofisticada do cientista para se orientar dentro de uma floresta, do deserto, dos rios e dos mares. Assim como dentro de uma floresta, dos desertos, dos rios e dos mares, os caboclos nativos, eles sempre se orientam através do sol, um dos maiores orientadores durante o dia. Como ele se orienta pelo sol? Ele entra na floresta, marca para que lado correm as águas, para que lado o sol nasce, e ele entra e marca o rumo certo para onde vão as águas, e se orienta pelo sol. Vamos dizer o seguinte: e se por acaso modificar o tempo e o sol ficar nublado? Como ele vai sair?

Quando o caboclo entra na floresta, a arma mais apropriada é um facão, que a linguagem do caboclo chama de terçado. Ele puxa o facão de dentro da bainha e vira, faz um movimento do facão que dá o reflexo do sol. Aí ele sabe para que lado o sol está, mesmo nublado. Aí, ele planeja um rumo e fica mais fácil ele sair. Do mesmo jeito um pescador no alto mar.

COMO É A ORIENTAÇÃO DO CABOCLO NA FLORESTA - AS ESTRELAS

E de noite? O caboclo não tem relógio. Como ele vai saber que hora é? Ela se baseia pelas estrelas que dão algum rumo para ele. O Sete Estrelas é uma das coisas em que sempre o caboclo se baseia, Onde ele nasce, onde se põe. Uma constelação que geralmente nasce no Norte e se põe no Sul. Conheço desde pequeno: tem sete estrelas.
Uma coisa interessante é que tem época do ano em que o Sete Estrelas não aparece, no mês de maio ele não aparece no céu. Então, tem sempre outras estrelas para substituir.

Existem os apelidos que os caboclos botam nas estrelas: estrela disso, estrela daquilo, Sete Estrelas, a Matutina da Madrugada, aquela que nasce às 4h30 a 5h, depende do fuso horário. Tem época do ano em que a noite é maior do que o dia. Ela sai mais cedo. E na época em que a noite é maior do que o dia, ela sai mais tarde. Então, ele já tem uma base.

Às vezes, o caboclo bota a mão na posição de uma sobre a outra, em cruz, e marca com o dedo. Assim, se ele vira para o lado do sol, o sol marca quantas horas tem, pela sombra. Do mesmo jeito são as estrelas. Se a estrela está numa posição, ele levanta e sabe qual é a hora da madrugada, que horas são da manhã. Ele tem que ter um ponto de referência. Relógio, geralmente, não existe. Naquela época em que a Amazônia era Amazônia mesmo, caboclo não tinha relógio, não tinha nada. Ele tinha que se virar com a natureza mesmo.

COMO É A ORIENTAÇÃO DO CABOCLO NA FLORESTA - ÁRVORES E ÁGUAS

Quando o tempo está muito nublado, que não tem sol durante o dia e não tem condições de você ver, como deve tirar seu rumo? É por uma árvore. Você marca uma árvore. Geralmente, o galho dela mais alto que tem na floresta está virado para lado o nascente. É por onde ela recebe as primeiras chuvas, os primeiros frutos. Você já sabe que os galhos menores estão virados para o lado do poente. E assim a gente vai encontrando uma maneira de se ligar.

Eu tive uma época na minha vida quando eu cheguei na Amazônia, que passei quase uma semana, noite e dia, sem sair. Aí um caboclo me ensinou. Quando tu não sabe uma maneira de sair, aí tu procura as águas que é o maior mestre dentro da floresta para o caboclo se sair, quando está perdido.

Se ele sai numa pequena vertente, aquela vertente é um pequeno afluente de uma pequena vertente que vai dar num afluente maior. Então você vai seguindo aquele afluente maior, que vai dar num afluente maior, até que vai dar na beira de um rio. Geralmente, na beira de um rio sempre mora alguém, passa alguma embarcação. Você sai na beira de um rio e automaticamente já está fora do perigo de estar perdido.

E assim são muitas as orientações do caboclo que está dentro da floresta. Tem uma época do ano que tem uma estrela no céu que a gente chama de Lupunamanta. No Nordeste, tem pescador na beira de algum rio, tem caboclo que se você perguntar que estrela é essa ele vai dizer:
- É a Estrela da Madrugada.
É aquela estrela que mantém o sereno. Tem região, como no Acre, a região no deserto onde ela está mais viva. Onde não chove, então a chuva ali é o sereno. Chega a molhar o chão, molhar tudo. É uma espécie de orvalho. Molha a terra.
Tem região em que pouco chove, mas está sempre caindo nuvem e sempre está serenando. Cai mais orvalho que em qualquer lugar da terra. Tem a impressão de que não chove lá. O movimento que as estrelas e os planetas fazem sobre a terra, é muito mais interessante. Já na Amazônia, fica mais difícil porque tem muita floresta, muita coisa para a situação do caboclo.

Tem gente que diz que é cientista.
- É? Deixa teus instrumentos e vamos andar dentro da floresta para ver se tu é bom mesmo. Aí pega um caboclo daqueles que nunca viu na vida, que chama de mateiro. Ele passa 15 dias viajando dentro da floresta e, no dia em que ele sai, ele deixa o chapéu num canto. Ele não corta um galho de pau. Uma vez eu vi um caboclo andando na floresta, ele pega um árvore, e torce ela por cima e vira ela para a posição traseira. Por que faz isso? Quando ele volta, ele sabe que aquela árvore está mostrando o lugar de onde ele saiu. Mas ele não faz um pique, fazendo uma estrada, uma trilha.

Ele acha que se sai cortando árvore dentro da floresta, já está devastando a natureza. Já está cortando o que não deve cortar. Ele torce o galho hoje e vira para a parte de baixo. Aí ele faz uma curvatura e sobe de novo. Aí, você já sabe que por ali passou alguém um dia. É uma coisa misteriosa. 

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