sábado, 17 de novembro de 2012

Caso Guarani-Kaiowá nos alerta da truculência dos tempos, diz antropóloga

Brasília, 31/10/2012 – Alunos de escolas públicas, privadas e universidades fazem manifestação, na Esplanada dos Ministérios, em apoio aos índios guarani-kaiowá. Foto de Elza Fiúza/ABr


Brasília, 31/10/2012 – Alunos de escolas públicas, privadas e universidades fazem manifestação, na Esplanada dos Ministérios, em apoio aos índios guarani-kaiowá. Foto de Elza Fiúza/ABr

“Despejar” índios de suas terras é uma prática recorrente no Brasil desde que os primeiros portugueses pisaram por aqui, cinco séculos atrás. Mas as expulsões arbitrárias e os extermínios violentos raras vezes mobilizaram de fato a sociedade civil, mesmo quando questões indígenas se tornaram pauta de governos, fundações, ONG’s etc.

Um dos capítulos mais recentes dessa história, no entanto, envolvendo os Guarani-Kaiowásno Mato Grosso do Sul, alcançou uma repercussão quase inédita no país, em tempos de internet e redes sociais. O motivo principal foi uma carta divulgada no último mês pelos índios, na qual eles falavam em “morte coletiva” no caso de despejo de suas terras.
Pertencentes a uma tribo já conhecida pelas altas taxas de suicídio, eles pediam que, se fosse para tirá-los de lá, era melhor decretar de uma vez por todas sua dizimação e extinção total. A Justiça Federal acabou suspendendo a decisão liminar que obrigava a saída dos cerca de 170 índios de uma área da fazenda Cambará, mas ainda não há uma resolução definitiva para o problema.
Para além dos fatos concretos, das ordens judiciais e decisões políticas imediatas, parece estar por trás do caso dos Guarani-Kaiowás, como de tantos outros, uma antiga intolerância e incompreensão do pensamento indígena. “Há ainda uma insuperada distância mantida com relação às formas ameríndias de conhecer e habitar o mundo”, afirma Marta Rosa Amoroso, professora do Departamento de Antropologia da USP.
Na busca de uma discussão mais aprofundada sobre o caso, fugindo do senso comum, a revista Brasileiros, 14-11-2012, entrevistou a antropóloga, pesquisadora e especialista em etnologia indígena.
Eis a entrevista.
Costumamos falar de manifestações como o racismo declarado nos EUA, o preconceito religioso ou a xenofobia na Europa como realidades completamente distantes da brasileira, já que tendemos a ver o País como “um lugar da tolerância, da miscigenação”. Quando vêm à tona questões como a dos Guarani-Kaiowás, no entanto, parece ficar clara a incapacidade que temos, aqui também, de conviver os “os outros”, de respeitar “os diferentes”. Guardadas as diferenças entre cada caso, você acha possível traçar um paralelo entre essas realidades? Quer dizer, a “base da incompreensão” é a mesma?
No caso dos países e regiões citadas, são projetos bastante distintos de construção da identidade nacional ou religiosa e, neste sentido, incomparáveis. Fiquemos, portanto com a particularidade do processo pelo qual se deu a construção da nação brasileira e o lugar que os índios ocuparam neste projeto. Foi com D. Pedro II que a ideia de uma nação brasileira se formulou e isso se fez a partir da noção da pluralidade dos povos que a compunham. Políticas públicas orientadas pela brandura para com os índios conceberam ainda no século XIX os aldeamentos indígenas do Império, equipados pelo governo central para servirem de comunicação entre a sede do Império e as povoações indígenas, instituídas enquanto as fronteiras habitadas da nação. As aldeias dos Guarani-Kaiowá, Nandeva e Mbya, como também as dos Kaingang da região sudeste do Brasil – hoje palco de intensa disputa pelo agronegócio – fornecem neste sentido um excelente exemplo de fronteiras do Brasil habitadas por indígenas. Na Guerra do Paraguai essas aldeias indígenas serviram de base para a criação dos aldeamentos do Império, dispostos na fronteira e equipados para atender os povos indígenas garantindo a eles espaço, tanto no território como no projeto da nação. Os índios estavam ali, o Estado brasileiro reconhecia, e os índios continuam ali.
O que mudou, e entramos no tema da intolerância, foi a lentidão da resposta do Estado brasileiro para as demandas por terra dos povos indígenas do sudeste do país. Nos anos1990, a demarcação das terras indígenas motivada pela questão ambientalista voltou-se para a Amazônia, deixando o sudeste indígena sem um programa sistemático de identificação e demarcação das terras. Este processo que se inicia em alguns casos só agora, é mais do que aguardado e urgente. Os Kaiowá-Guarani do sudeste do país foram deixados sem garantias e protagonizaram ali, sem a devida proteção do Estado, a luta pela terra, em meio a imensas disputas.
Nesse sentido, mesmo em muitas das manifestações de apoio aos índios que proliferam na internet, nota-se um ranço de uma visão “etnocêntrica”. Um certo olhar de “pena” às vezes se sobrepõe à uma discussão mais horizontal. Você concorda? Se sim, o que isso parece revelar?
Não podemos reduzir o imaginário construído sobre os povos ameríndios a esse tipo de visão na qual o índio é vítima, ainda que a leitura da assimetria na chave da desigualdade social seja facilmente acessada pelo senso comum. Os índios aderiram às redes sociais e protagonizam movimentos políticos que ocupam as nuvens da internet com outro tipo de mensagem, colocada à disposição dos que se interessam pelas dinâmicas contemporâneas.  Mas no caso dos índios do sudeste e de sua luta bastante antiga pela garantia do seu território, penso que associá-los a população de risco em situação liminar não é nada descabido, e neste sentido a comoção que essa luta mobilizou não me parece exagerada.
Você acha, portanto, que existe uma dificuldade (ou mesmo uma falta de vontade) de entender o ponto de vista indígena? Ou seja, o típico pensamento do “homem branco ocidental” de que “nós sabemos o que é bom para eles” ainda predomina?
Há ainda uma insuperada distância mantida com relação às formas ameríndias de conhecer e habitar o mundo. Este não reconhecimento da diferença pode estar por trás de muitos dos projetos de filantropias e programas de desenvolvimento voltados para os índios. Novamente o caso dos Guarani é sugestivo para se pensar o tema da construção do conhecimento em diferentes chaves de compreensão. Para falar de sua territorialidade, os Guarani mobilizam uma noção ampla e compreensiva dos diversos domínios do cosmos que é a noção do Tekoha. Diante dessa macro categoria, símbolo do universo em conexão, as cestas básicas e os assistencialismos rastaqueras que são aventados como compensação aos territórios surrupiados são uma boa medida da distância que se manteve das formas ameríndias de conhecer e habitar o mundo.
Ao mesmo tempo, a enorme mobilização ocorrida nas redes sociais, e até manifestações de rua, mostram uma novidade no quadro, com muita gente que não tem interesses diretos agindo pela causa…
De fato a comoção tomou dimensões surpreendentes nestes tempos de baixíssimas mobilizações pró-índio. Como se precisássemos de imagens contundentes como as dos Guarani-Kaiowá para nos alertar da truculência dos tempos.
Agora, tentando entender melhor o ponto de vista dos índios: quando falamos em luta pela terra, muita gente parece não entender que a visão dos índios não é como a nossa, da luta pela propriedade privada. Claro que cada tribo é diferente da outra, mas, de modo geral, como é a relação do índio com a terra onde mora? Não é de posse, certo?
Sugiro que a reportagem acesse uma imagem panorâmica da região do oeste do Paraná e do sul do Mato Grosso do Sul e nela identifique onde se pratica o modo de vida Guarani , em contraste com as outras formas de cultivo da terra. Já na época da demarcação das terras indígenas na Amazônia havia ficado claro que onde os povos ameríndios mantiveram a presença, a floresta havia se mantido. Estas imagens projetadas na paisagem nos falam, no caso dos povos indígenas, de modelos sócio-políticos baseados em dinâmicas de mobilidade constante e de uma cosmovisão pautada pelo comedimento e pela ética de moderação identificável nos regimes de relação com o que identificamos como “ambiente”, que para os ameríndios não se apresenta como algo apartado.

Na nossa sociedade, o suicídio é visto como a decisão mais “pessoal” e “individual” de todas. Quando os índios falam, na carta que veio a público, em um tipo de suicídio coletivo – ou de morte do povo por resistência –, chama atenção a profunda ligação deles com a comunidade e o modo com que colocam suas vidas à disposição dessa causa. Qual é essa concepção de mundo que eles transmitem no conteúdo desta carta?
carta veicula uma auto-reflexão dos Guarani-Kaiowá sobre as práticas de suicídio entre os jovens Guarani-Kaiowá, auto-reflexão esta motivada pela intenção das lideranças indígenas de alertar os brasileiros sobre outro conjunto de mortes, os assassinatos de índios naquelas fronteiras. Sintomaticamente, é o fenômeno do suicídio que a organização indígena mobiliza para falar ao Brasil da situação agônica que os Guarani-Kaiowá vivem na luta pelo direito à terra.
fonte: ecodebate.com.br

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