domingo, 13 de janeiro de 2013

Aquecimento Global: Alexandre Costa comenta a previsão decadal do United Kingdom Meteorological Office




Bomba, bomba? Realmente a vida real é por demais dinâmica, para seguir à risca certos planejamentos. Volto, portanto, a “furar a fila” das temáticas a serem abordadas neste blog e, nesta postagem, venho priorizar a recém-anunciada “revisão” da previsão decadal do United Kingdom Meteorological Office (UKMO ou Met Office). O que tem acontecido é que negadores têm espalhado por aí que o instituto britânico estaria “prevendo menos aquecimento” ou até mesmo “admitindo que o mundo não aquecerá”.
Evidentemente trata-se de mais uma farsa a ser devidamente desmontada. Infelizmente, é possível até que canais de informação de boa qualidade sobre a questão ambiental e climática se deixem levar equivocadamente por parte desse discurso. Por exemplo, o Portal Ecodebate reproduziu matéria da BBC que se de um lado nada tem a ver com a desonestidade de certos órgãos da mídia (como a Fox News  norte-americana), do outro confunde alguns conceitos e não esclarece os pontos que devia, deixando margem a uma impressão errônea em relação ao que de fato está acontecendo.

O motivo da suposta controvérsia é o par de gráficos que mostro a seguir. Eles correspondem, respectivamente às chamadas previsões decadais do UKMO emitidas em 2011 (à esquerda) e em 2012 (à direita). A linha preta representa observações, ou seja, são a realidade. A faixa vermelha (que contém uma linha branca no meio, pouco visível) corresponde ao intervalo probabilístico de simulações anteriores (90% de probabilidade). Finalmente, as linhas azuis finas delimitam esse mesmo intervalo para a previsão do momento, com o valor mais provável, no meio.

Um momento, Alexandre! Não é evidente que os valores mostrados ao final do gráfico à direita estão abaixo dos da esquerda? Ok, mas isso não é tudo. Aproveitarei, pois julgo necessário, esclarecer algumas questões antes de prosseguirmos, distinguindo previsão de tempo, previsão de clima e projeções climáticas de longo prazo… mãos à obra.

PREVISÕES DE TEMPO, PREVISÕES DE CLIMA, PROJEÇÕES CLIMÁTICAS
Primeiro, é preciso que se saiba de uma coisa: as previsões de tempo (poucos dias), as previsões climáticas sazonais (tipicamente poucos meses) e as previsões climáticas decadais (que são uma novidade e que poucos centros oferecem) são todas feitas usando modelos numéricos computacionais. Nestes, as equações que representam as leis físicas da atmosfera e, se for o caso, dos oceanos e demais componentes do sistema climático, como o gelo, são resolvidas (por isso requerem computadores de grande porte, com grande capacidade de processamento e armazenamento de dados).

Prever tempo significa prever se vai esquentar depois de amanhã, se vai chover daqui a três dias e fazer sol no dia seguinte, etc. Como a atmosfera evolui muito rapidamente (e de forma não-linear, isto é, pequenas mudanças podem levar a grandes efeitos, o que se costuma chamar de “efeito borboleta” ou usando um termo mais rigoroso, hipersensibilidade às condições iniciais), não é possível fazer previsão de tempo por mais do que alguns dias. Quando estava à frente do Departamento de Meteorologia da instituição responsável aqui no Ceará (a Funceme), isso significava desiludir quem ligasse querendo saber se iria chover numa data que ainda estava distante de meses pois queria fazer uma festa em buffet aberto…

Aí alguém pode me perguntar: mas então como é que vocês prevêem se a estação chuvosa, meses adiante, vai ter chuvas abaixo da média ou acima da média. Ou ainda pior, como é que vocês se atrevem a dizer o que vai acontecer daqui a 100 anos se o CO2 continuar a aumentar? Simples. São paradigmas distintos.

Imagine que você dispõe de um par de dados comuns, desses nos quais contamos a pontuação pelo números em cada face e para os quais, a princípio, a probabilidade de qualquer face cair voltada para cima é a mesma. O tempo equivale ao que acontece se fizermos um único lançamento. Pode dar 5. Pode dar 9. Pode dar 11. Na verdade, pode dar qualquer número entre 2 e 12. Se o jogador lançar os dados como manda o figurino, o desfecho do lançamento é, na prática, imprevisível, certo? Mas o que seria o análogo ao clima? Seria uma sucessão de lançamentos, o que nos permitiria lidar com probabilidades, com situações mais ou menos prováveis. Façam uma experiência. Lancem um par de dados um grande número de vezes e anotem o resultado após cada lançamento e depois calcule a média. É grande a chance de encontrar um valor próximo de 7, quanto maior for o número de vezes que o par de dados for lançado, ainda que não saibamos quantos pontos iremos obter em cada lançamento individualmente. Isso é o clima.

Numa previsão climática sazonal, pode-se utilizar somente um modelo atmosférico (que calcula os ventos, a temperatura, a umidade, etc. em várias altitudes na atmosfera, bem como a precipitação, isto é, chuva, neve, etc., que chega à superfície). Este é alimentado por informações da temperatura da superfície do oceano (observadas e/ou previstas por algum método), pois esta é um parâmetro muito importante para determinar o comportamento médio da atmosfera numa escala de vários meses (um exemplo é a tendência à ocorrência de secas no Nordeste, quando ocorre um El Niño no Pacífico, isto é, as águas da porção equatorial central e leste desse oceano se aquecem). Mais recentemente, tem sido comum usar, ao invés do modelo atmosférico sozinho, um modelo dito “acoplado”, incluindo pelo menos um oceano dinâmico, isto é, as equações da dinâmica e da física dos oceanos (que evoluem bem mais lentamente que a atmosfera) também são calculadas. Os dois modelos (o atmosférico e o oceânico )trocam informações entre si e é nisto que consiste o “acoplamento” (por exemplo, o oceano informa a temperatura da superfície e isto modifica os ventos, o que, por sua vez, interfere de volta na temperatura do mar, e assim sucessivamente). Resgatando a analogia dos dados, note que um ano de El Niño, para o Nordeste, equivale a um “dado viciado”, tornando valores menores (de pontos nos dados ou de chuba no sertão) mais prováveis. Não se prevê chuvas em dias específicos, mas se as chances destas ocorrerem, condicionadas por um fator externo (no caso, a temperatura da superfície do mar), serão maiores ou menores na média, ao longo dos vários meses. Neste caso, as condições iniciais da atmosfera são, na prática, irrelevantes.

No caso de uma previsão decadal (isto é, no horizonte de vários anos), aí não tem jeito. Um modelo oceânico tem de ser incorporado, isto é, é feita a previsão das correntes, da temperatura, da salinidade e, por vezes, até componentes do sistema climático, de evolução ainda mais lenta, como a criosfera (isto é, o gelo presente nos mantos e calotas polares, geleiras continentais, etc.), a vegetação, a hidrologia continental (rios), etc. Neste caso, a idéia é prever, sabendo as condições atuais do oceano (não só na superfície, mas também em profundidade) a sua evolução futura, incluindo a ocorrência, por exemplo, de um evento de El Niño daqui a poucos anos. Asseguro-lhes: é um tremendo desafio. E o porquê é o fato de prever a evolução do oceano em escala de meses a anos é o equivalente a fazer previsão de tempo para o oceano. Quanto mais distante no tempo é o horizonte de previsão, mais difícil se torna acertar a previsão de um evento específico. Do mesmo modo que prever se vai chover amanhã se tornou trivial, mas prever chuva para daqui a 10 dias não, prever a evolução de um El Niño que já se iniciou ou está em vias de se iniciar ao longo dos próximos 6 meses é relativamente simples. Prever a ocorrência de um evento desse tipo daqui a 3 ou 5 anos ainda é algo bastante ousado, principalmente porque não temos uma cobertura de observações oceânicas tão boas quanto temos para a atmosfera! De certo modo, é um retorno à incerteza da previsão de tempo só que nesse caso a incerteza diz respeito aos oceanos…

Supercomputador do National Center
for Atmospheric Research, nos EUA

Essencialmente os mesmos modelos com atmosfera, oceano, gelo, solo e vegetação acoplados (e os mesmos supercomputadores) são utilizados nas longas simulações de projeções climáticas, em escala de várias décadas e séculos. Nessas simulações, voltamos, de mala e atmosfera, de cuia e oceano, com cachorro, papagaio e criosfera ao paradigma dos muitos lançamentos de dados. As projeções de longo prazo envolvem não a ocorrência deste ou daquele evento de El Niño  num ano especifico, mas na probabilidade de um evento dessanatureza ocorrer ou não. Nas chamadas simulações “históricas” do clima, por exemplo, que servem de teste para saber se o modelo consegue ou não representar o “clima do presente” não interessa se o modelo simulou ou não um El Niño em 1998, por exemplo. Interessa saber se ele simulou a formação de um total de El Niños ao longo do século XX parecido com o da realidade e se esses eventos tiveram intensidade similar à dos eventos reais. Mudança climática envolve não só alterações na temperatura média global, mas pode implicar em mudanças na estatística de El Niños, ao se mudar as condições externas (concentração de CO2 atmosférico, por exemplo). Neste caso, portanto, as condições iniciais do oceano são irrelevantes, o que não acontece com a previsão decadal. Esta é “clima” do ponto de vista da atmosfera, mas é “tempo” do ponto de vista oceânico. Projeções de longo prazo são “clima” para um e outro! Trata-se, portanto, de um par de problemas distintos! Tão distintos quanto a previsão de tempo e a previsão climática sazonal, como explicamos anteriormente!
 

A PREVISÃO DA MET OFFICE SIGNIFICA QUE O AQUECIMENTO GLOBAL VAI ENFRAQUECER?
Não. Como espero que fique claro pelo que colocamos anteriormente, uma coisa é uma coisa, outra coisa…. Primeiro, as duas previsões sequer deveriam ser comparadas diretamente uma com a outra, pois foram feitas com modelos diferentes. Sim, como a previsão decadal é algo que ainda está em sua fase inicial, a Met Office trocou o modelo utilizado de um ano para o outro.

Mas vamos ignorar essa tecnicalidade e ir diretamente ao que realmente interessa. Por acaso uma previsão de que a temperatura de amanhã será mais baixa do que a temperatura de hoje implica que o aquecimento global deixou de existir e que a temperatura deixará de se elevar a longo prazo? Claro que não, não é verdade?

E de um ano para o outro, será que isso continua valendo? Podemos checar isso facilmente. Na tabela que mostrei neste texto e que reproduzo novamente aqui ao lado, fica evidente que não. Afinal, 2011 foi mais frio que 2010 e isso não significa nada. Da mesma forma, 2004 foi mais frio que 2003 e 2007 foi mais frio que 2006. Evidentemente não podemos levar esse raciocínio adiante indefinidamente, para escalas de tempo cada vez mais longas. Mas até onde podemos ir? A resposta está exatamente na escala decadal.

Quando se fala de aquecimento global, fala-se de tendências de longo prazo, para além da escala decadal. Se tomarmos uma década isoladamente, ainda podemos cair numa das armadilhas favoritas dos negadores: a fraude de dizer que “o aquecimento global desapareceu” e que “as temperaturas se estabilizaram”. No entanto, tipicamente os institutos de meteorologia assumem que períodos de mais do que uma década (a Organização Meteorológica Mundial recomenda 30 anos) são longos o suficiente para suavizar essas flutuações de curto e médio prazos. Na figura ao lado, está representada a evolução, ao longo do tempo, das anomalias de temperatura média global. Qualquer pessoa no pleno exercícios de suas faculdades mentais (ou menos que isso) pode perceber uma evidente tendência de aquecimento no período (de 40 anos). Mas se pegarmos pequenos períodos de menos de uma década (escolhidos a dedo, diga-se de passagem) poderíamos realmente, como evidenciado através das retas azuis decrescentes na figura sair por aí dizendo que “o mundo está resfriando”? Em outro de meus textos anteriores, mostrei, através de gráficos simplificados, idealizados, como oscilações naturais e o aquecimento antrópico se somam, dando a sensação, durante períodos de alguns anos, de estagnação e, em outros, de rápido aquecimento.

Voltemos agora à discussão das previsões decadais apresentadas pela Met Office. Se é evidente que a previsão de temperatura global feita em 2012 para os anos subsequentes não é tão alta quanto a previsão feita em 2011, não seria correta a legenda da foto na matéria da BBC reproduzida como manchete pelo Portal Ecodebate? Não, não é. Por definição! A previsão decadal trabalha com poucos anos adiante e, portanto, não cobre um intervalo de tempo suficiente para que se possa falar do “ritmo de aquecimento”. As projeções de longo prazo, sim. E as projeções do próprio Met Office vêm de outras simulações, como as últimas que descrevemos na porção anterior deste texto. As simulações de cenários que o instituto inglês fez para contribuir com a elaboração do 5º relatório do IPCC, o AR5, projetam Para essas simulações, as condições iniciais, inclusive, não são relevantes para o longo prazo, então não vêm de observações. São continuações das “simulações históricas”.

Ou, nas palavras da própria Met Office, que emitiu o comunicado neste último link à imprensa:
“As previsões decadais são concebidas especificamente para prever flutuações no sistema climático a partir do conhecimento do clima atual e da variabilidade multianual dos oceanos.
Pequenas flutuações ano-a-ano como aquelas que se vê no prazo mais curto de previsões de cinco anos são esperadas devido à variabilidade natural do sistema climático e não tem impacto sustentado no aquecimento de longo prazo.
Neste caso, mudanças nas temperaturas da superfície em algumas partes do mundo ao longo do ano passado ofereceram uma contribuição-chave para as diferenças entre as previsões de 2011 e 2012, mas outros fatores também tiveram seu papel.
Projeções em escala de séculos são menos sensíveis à variabilidade natural e as atualizações da previsão decadal em 2012 não dizem nada sobre as projeções de mudança climática para o século vindouro.”

O ritmo de aquecimento é ditado, na verdade, pelo desequilíbrio energético, isto é, pela diferença entre a energia que entra no sistema climático e a que sai. Em função do aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, está entrando mais energia no sistema climático do que saindo e essa concentração só tem aumentado num ritmo cada vez mais acelerado. De 1971 a 2010, foram nada menos que 273 bilhões de trilhões de Joules. Para se ter uma idéia, a explosão da Bomba de Hiroshima liberou 52 trilhões de Joules, então o aquecimento planetário nas últimas 4 décadas equivaleu à explosão de mais de 5 bilhões de bombas atômicas como a “Little Boy”, o que é uma energia maior do que a que seria liberada se todo o arsenal nuclear da humanidade tivesse sido detonado. De ano para ano ou de poucos anos em poucos anos, o calor acumulado pode ser usado em maior proporção para aquecer porções profundas do oceano; em outros, para derreter o gelo, sem grandes impactos sobre a temperatura na superfície. Em outros, esse calor flui em maiores proporções dessas outras componentes do sistema climático para a atmosfera.

Portanto, a previsão da Met Office obviamente não só não “desmonta a farsa do aquecimento global” como querem os negadores mais tresloucados, mas sequer é uma “boa notícia” como aparentemente  quiseram enxergar setores da imprensa e mesmo do ambientalismo. As únicas “boas notícias” pelas quais podemos – não esperar, mas lutar – são o estabelecimento de um acordo global para reduzir as emissões, seguida de uma desaceleração no crescimento das concentrações de CO2. Sem isso, o “ritmo” do aquecimento global não diminuirá num passe de mágica. E a “bomba, bomba” dos negadores, assim como o tiro no pé com ovazamento do AR5, não passa de outro traque…

Alexandre Costa, Fortaleza, Ceará, Brazil, é Ph.D. em Ciências Atmosféricas, Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará.

fonte: http://oquevocefariasesoubesse.blogspot.com.br/2013/01/met-office-esta-prevendo-um-ritmo-menor.html

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