Os quatro grandes fracassos da Rio+20 e o conservadorismo do Brasil
Por Graziela Wolfart e Patricia Fachin, da IHU On-Line
"O que o Brasil fez na Rio+20 foi tentar diminuir ao máximo o componente ambiental e global da Conferência. E isso tem a ver com o fato de que a presidente Dilma e o núcleo do governo tem uma visão bem tradicional do desenvolvimento econômico, constata o sociólogo da UnB.
Uma das expectativas da Rio+20, a partir da discussão central da governança global, era a criação de um novo organismo ambiental internacional, que substituísse o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, e pudesse “definir estratégias normativas, avaliar os países e eventualmente punir países que não cumprem os compromissos assumidos”. A criação deste organismo não foi possível porque “a maioria dos países, com exceção da União Europeia, não quer ceder soberania nacional para desenvolver governanças globais”, diz Eduardo Viola.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o sociólogo avalia quais os foram os principais impasses e retrocessos da conferência e afirma que a crise econômica impossibilitou avanços significativos, mas ela “poderia ter favorecido a criação de um fundo de apoio para a transição e adaptação das mudanças climáticas dos países pobres”. Diante da terceira grande crise econômica, ele enfatiza que ela é ainda mais profunda do que as anteriores, pois “está relacionada à exaustão dos limites planetários”. “Essa visão é negada pelos grandes líderes mundiais, que querem recuperar a crise voltando ao passado, investindo em um crescimento convencional, quando se precisa superar a crise mudando radicalmente de paradigma”, assegura.
Em relação à mobilização da sociedade civil na Cúpula dos Povos, Viola acrescenta que elas contribuem para o debate, mas enquanto “não se tornarem maioritárias, não mudarão a dinâmica intergovernamental, porque os governos, em grande medida, representam as suas sociedades. O atraso do governo representa o atraso da sociedade na compreensão e enfrentamento dos problemas. Quando falamos da sociedade civil, estamos falando de uma sociedade minoritária, militante, consciente, muito preocupada com o bem público. Mas isso não representa toda a sociedade e a população mundial”.
Eduardo José Viola é graduado em Sociologia pela Universidade de Buenos Aires, especialista em Relações Internacionais pela Fundación Bariloche, mestre em Sociologia pela Universidade de Campinas – Unicamp, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, e pós-doutor em Economia Política Internacional pela University of Colorado. Atualmente é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília – UnB e coordenador da Rede de Estudos e Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais e Relações Internacionais.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Antes da Rio+20, o senhor havia dado declarações de que a conferência não teria condições de ser bem-sucedida. Sua opinião se confirmou? Por quais razões a Rio+20 fracassou?
Eduardo José Viola – Sim, a expectativa se confirmou, inclusive foi um pouco pior do que eu imaginava. O primeiro aspecto que demonstra o fracasso da conferência diz respeito à eliminação da questão dos limites planetários do documento final. Essa discussão sobre os limites planetários estava no documento original, mas foi retirada muito provavelmente por pressão de vários países do G77, como a Índia, por exemplo. Essa era uma questão-chave na medida em que se fala de desenvolvimento sustentável, pois hoje existe um limite planetário, ou seja, a margem de manobra hoje é muito menor do que aquela de vinte anos atrás. São sete os limites planetários, e três já foram ultrapassados: as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e o ciclo de acumulação do nitrogênio.
O segundo ponto que caracteriza a Rio+20 como um fracasso é o fortalecimento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, que é uma declaração genérica e vaga num momento em que se precisava de uma transformação muito forte para colocar-se em correspondência com as necessidades apontadas pela ciência do ponto de vista da governança ambiental global. Precisávamos de uma organização ambiental global não apenas como uma agência especializada das Nações Unidas, como propunha a União Europeia – a mais avançada que havia na mesa –, mas de uma organização tal ou mais poderosa que a Organização Mundial do Comércio – OMC, ou o Fundo Monetário Internacional – FMI. Não foi possível avançar nesse sentido porque a maioria dos países, com exceção da União Europeia, não quer ceder soberania nacional para desenvolver governanças globais. Nesse aspecto, o Brasil também se inclui. Então, falta uma organização internacional poderosa que possa definir estratégias normativas, avaliar os países, e eventualmente punir países que não cumprem os compromissos assumidos.
Os Estados nacionais, as populações e a opinião pública são mais nacionalistas. Hoje a defasagem entre a ciência e a opinião pública média do mundo é gigantesca, porque a opinião pública média trabalha mais ou menos como trabalha a mente humana média, que não é muito diferente de quando surgiu o homo sapiens. Ou seja, reage a ameaças imediatas muito tangíveis ou à imoralidade extrema. Esse tipo de coisa gera mobilização, revolta, revoluções. Agora, os limites planetários são ameaças complexas de médio e longo prazo, de difícil compreensão para a mente humana média. Então, a proporção de pessoas que conseguem compreender as ameaças globais e os limites planetários é muito pequena. Mas mesmo entre os cientistas que compreendem o problema, existem aqueles que não mudam suas atitudes e comportamentos em correspondência com o que estão compreendendo.
Objetivos do desenvolvimento sustentável
O terceiro ponto pelo qual considero a Rio+20 um fracasso diz respeito ao fato de não ter havido definição dos objetivos do desenvolvimento sustentável. Novamente definiram um processo para negociar os objetivos do desenvolvimento sustentável num prazo de dois a três anos. Mas não se estabeleceu nenhum parâmetro para essa negociação. Os mesmos impasses que estiveram presentes nas negociações dos objetivos da Rio+20 nos últimos dois anos continuam presentes.
Economia verde
O quarto fator importante diz respeito à dificuldade de aceitar uma definição consistente, robusta e sustentável de economia verde, porque, por um lado, o conceito de desenvolvimento sustentável já é antigo, difuso e tem diversos significados. O conceito novo, que emergiu a partir de 2006, é o de transição para a economia de baixo carbono. Esse é um conceito preciso e consistente, porque tem métrica, mas ele é simplista, porque só avalia a questão do carbono, que é fundamental, mas não avalia o que seria uma economia sustentável, verde, tampouco considera a questão da água, da biodiversidade, do nitrogênio etc.
A ideia de definir uma economia verde, combinando o crescimento econômico dentro do espaço de operações seguro da humanidade, deveria levar em conta a economia verde de baixo carbono, mas numa perspectiva muito mais ampla. Entretanto, não houve o menor avanço nesse sentido, porque os países do G77, incluindo o Brasil, têm certa paranoia em relação à economia verde, porque pensam que ela irá servir aos interesses protecionistas dos países desenvolvidos. Se se definisse a economia verde em relação à definição científica dos limites planetários, e em relação ao princípio de equidade, que obviamente daria um espaço mais significativo para o crescimento econômico dos países pobres, menos para países emergentes, como Brasil e China, e quase nada para países desenvolvidos, a economia verde seria uma definição extraordinária.
ONU
A Rio+20 também confirmou o que já vinha sendo discutido, ou seja, de que o mecanismo das Cúpulas da ONU baseadas nas negociações de 200 atores diferentes, que devem estar de acordo num consenso mínimo comum de dominador, em vez de votação qualificada, não funciona mais. É uma perda de tempo. Esse tipo de conferência é hoje uma indústria de recursos.
Obviamente a Rio-92 foi importantíssima, porque aconteceu na saída da Guerra Fria, em que os problemas ambientais globais emergiam no mundo, e foi o primeiro momento no qual entraram no sistema internacional. Mas hoje, 20 anos depois, esse mecanismo precisa ser modificado. Pertenço a um grupo de cientistas que se chama Governança do Sistema Planetário, que publicou há três meses na revista Science um artigo muito importante que propõe uma reforma no sistema de governança global, difícil de realizar, mas necessária na agenda da humanidade, porque, do contrário, a humanidade não irá avançar.
IHU On-Line – Os países desenvolvidos argumentam que enfrentam uma crise econômica e que, por isso, não é possível avançar nas questões ambientais. A conjuntura internacional atual realmente atrapalhou o consenso de um documento final significativo e produtivo?
Eduardo José Viola – A crise econômica tem alguma significação, mas a crise poderia ter favorecido a criação de um fundo de apoio para a transição e adaptação das mudanças climáticas dos países pobres. Atualmente, o mundo enfrenta a terceira grande crise econômica mundial. A primeira foi em 1873, e terminou em 1890. A segunda iniciou em 1929, e terminou em 1939, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Hoje estamos vivendo a terceira grande crise, que é profunda, e está relacionada à exaustão dos limites planetários. Essa visão é negada pelos grandes líderes mundiais, que querem recuperar a crise voltando ao passado, investindo em um crescimento convencional, quando se precisa superar a crise mudando radicalmente de paradigma. Mas essa visão é aceita por poucos países como os escandinavos, a Alemanha, a Coreia do Sul, e União Europeia.
IHU On-Line – Que lacuna fica aberta na Rio+20 em função do desinteresse de potências como China e EUA na temática ambiental?
Eduardo José Viola – Esse é um fator decisivo. Se China e EUA tivessem tido uma posição como a da União Europeia, teria havido avanços na Rio+20, porque o mundo é uma estrutura assimétrica de países. Hoje existem três superpotências: EUA, China e União Europeia. Somente estes países têm condições de liderar o mundo. Depois, existe outro grupo de países que tem condições de ajudar a solucionar os problemas, que é formado pelo Japão, Rússia, Brasil, Índia e Coreia do Sul. Posteriormente, há uma série de potências médias importantes, como México, Indonésia, Turquia.
IHU On-Line – Das potências econômicas que existem hoje, por que somente a União Europeia propõe a criação de uma organização ambiental mundial?
Eduardo José Viola – É porque os países da União Europeia já cederam soberania nacional para criar uma estrutura supranacional. Ou seja, todos eles tiveram de abandonar parte do nacionalismo e ceder soberania. E agora, para superar essa crise no plano econômico e financeiro, terão de ceder ainda mais soberania, porque terão de passar não apenas para uma unidade monetária, mas também para uma unidade fiscal. A Europa irá na direção dos EUA ou irá se desintegrar.
As guerras mundiais do século XX entre países tão próximos e com culturas similares geraram uma cultura do horror e do que não se deve repetir mais, como manter a soberania absoluta, como foi no regime iniciado em Westfália, no século XVII. Quer dizer, uma catástrofe profunda gerou uma mudança de mentalidade dos países europeus. Mas isso não aconteceu nem nos EUA, nem na China, tampouco no Brasil.
IHU On-Line – Criou-se uma expectativa, quando Obama foi eleito, de que os EUA pudessem mudar a perspectiva ambiental, mas isso não ocorreu. Caso Obama seja reeleito, a política ambiental dos EUA tende a mudar?
Eduardo José Viola – No ano de 2009, primeiro ano do governo Obama, os EUA aprovaram a Lei Watson de mudanças climáticas, que não foi aprovada no Senado, mas que foi aprovada na Câmara dos Deputados. Porém, o governo de Obama foi se debilitando rapidamente por causa da crise econômica, do aumento do desemprego, que são produtos do governo Bush. Assim, seu governo não teve mais possibilidade de iniciativa em novembro de 2010, quando foi alvo do Partido Republicano. As coisas podem mudar nos EUA, mas isso não depende somente da reeleição de Obama, mas também de maioria democrata na Câmara e no Senado. Além disso, Obama tem que escolher como prioridade as questões ambientais.
IHU On-Line – Qual foi o papel do Brasil na Conferência? Diria que o Brasil dialoga mais com a posição da União Europeia, dos EUA, ou ficou em cima do muro? Qual a posição internacional do Brasil nesse debate?
Eduardo José Viola – Trata-se de duas coisas. O documento original do Brasil, de novembro do ano passado, é muito atrasado em relação aos avanços conquistados nos anos de 2009 e 2010, que correspondiam à grande queda do desmatamento da Amazônia em 2005, ao fato de assumir compromissos voluntários de dramática redução da curva de crescimento de emissões, entre 2005 e 2010, e de criar uma lei de mudanças climáticas. Tudo isso representou um grande avanço, talvez o principal avanço da sociedade brasileira em termos ambientais. Para que esses avanços ocorressem, foi importante a contribuição de uma série de fatores, tais como a ação muito incisa do ex-ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, e a ameaça da candidatura presidencial de Marina Silva.
Participação brasileira
Agora, porém, a posição do Brasil na conferência foi bem mais conservadora, tentando separar totalmente o debate da mudança climática da Rio+20, tentando diluir o componente ambiental do evento, enfatizando sempre o componente social. Podem ver que o documento brasileiro falava do Programa Bolsa Família e não falava da lei de mudança climática. Isso nos dá uma ideia de como o documento foi enviesado na direção desenvolvimentista tradicional. O que o Brasil fez, em grande medida, foi tentar diminuir ao máximo o componente ambiental e global da Conferência. E isso tem a ver com o fato de que a presidente Dilma e o núcleo do governo tem uma visão bem tradicional do desenvolvimento econômico. O poder do Ministério do Meio Ambiente, hoje, é muito menor do que o era em 2009 e 2010, ou na época anterior de Marina Silva. Então, se vê que nos últimos dois anos que o Brasil adotou uma política industrial convencional de promover a produção do país, independentemente da condicionalidade da eficiência energética, pois tem um subsídio gigantesco ao lobby automobilístico.
No mesmo dia em que terminou a Rio+20, o Brasil eliminou um imposto sobre combustível para o transporte público. Investe-se somente no carro, e o problema do transporte público se tornou muito mais grave. O objetivo do governo é crescer economicamente, pois estão desesperados, porque não crescem.
Depois, durante a dinâmica processual da negociação, o Brasil optou pelo caminho de menor risco, ou seja, em lugar de tentar se colocar como o mediador da conferência e contribuir para a produção de um documento mais ambicioso, derrotando os setores mais conservadores, optou pelo consenso a qualquer preço, ou seja, um consenso do nada ou quase nada. Trata-se, portanto, de um documento que não tem a menor relevância, porque só reafirma o passado. E ninguém explica porque as decisões tomadas há muitos anos não se realizaram. Essa é uma posição não só do governo, mas do Itamaraty, porque a cultura do Itamaraty é avessa ao risco.
IHU On-Line – O senhor menciona a necessidade de criar uma organização poderosa do meio ambiente, com a introdução de limites planetários nas diversas atividades econômicas. Como seria essa organização e que limites para as atividades econômicas seriam necessárias caso pensássemos em possíveis soluções para as mudanças climáticas?
Eduardo José Viola – A primeira coisa fundamental é uma política massiva mundial de direitos reprodutivos da mulher, para se chegar a uma fecundidade responsável. Hoje, no início do século XXI, a única fecundidade responsável é a de dois filhos por mulher, ou menos. A população do mundo era 5.5 bilhões de habitante em 1992, e é de 7 bilhões atualmente, ou seja, houve um crescimento extraordinário. O Brasil não tem mais problemas com essa questão, porque a fecundidade brasileira é 1.8, porque avançou nos direito reprodutivos das mulheres. A história mostra que, quando a mulher tem educação, status de independência, ela quer ter poucos filhos.
Essa é uma questão fundamental em relação à sustentabilidade, mas que foi retirada da declaração da Rio+20, e nessa discussão os EUA tiveram uma posição muito progressista, por causa do Obama.
Crescimento
O segundo ponto fundamental é avançar na ideia de prosperidade sem crescimento. Ou seja, existem países que não precisam mais crescer significativamente em termos de matérias, em termos econômicos, no uso de energia, de recursos naturais, porque já têm populações estabilizadas, possuem boa infraestrutura. Então, eles têm de ir reformando as suas infraestruturas para torná-las mais sustentáveis. Através da “economia verde” esses países não precisam mais crescer no sentido tradicional; sua dinâmica econômica pode ser de contínua redução de emissões de carbono.
Os países de renda média têm de crescer ainda, porque são muito desiguais: parte da população tem um nível de vida, e outra tem outra. Mas esses países têm de crescer de um modo muito diferente de como cresciam no passado. Não pode ser um crescimento intensivo em carbono, tem de ser um crescimento baseado em novas tecnologias, em fontes de energias renováveis. Esse é o ponto-chave.
Os países pobres, em geral, enfrentam um problema muito grande de governabilidade, têm altíssima corrupção, muitos já estão falidos. Eles precisam de um grande apoio da comunidade internacional para construir governança.
IHU On-Line – A Rio+20 colocou mais luz ou mais sombra sobre a possibilidade de organização de uma governança ambiental global?
Eduardo José Viola – A Rio+20 foi, de um lado a Conferência Intergovernamental e, de outro, a conferência paralela da Cúpula dos Povos, incluindo os setores científico, empresarial e movimentos sociais. Eu participei de onze eventos paralelos durante duas semanas, do dia 8 de junho a 22 de junho. Havia pelo menos quatro mil eventos paralelos, tanto no Riocentro como em outros lugares do Rio de Janeiro, além da Cúpula dos Povos, no aterro do Flamengo.
Esses eventos mostraram uma vibração muito grande da sociedade em relação à consciência do problema ambiental, ao desapontamento da dinâmica governamental, e a tentativa de encontrar novos caminhos. Nesse sentido, essas conferências paralelas formaram forças reformistas internacionais, porque são praticamente transnacionais, atravessam todos os países. Mas até essas forças não se tornarem maioritárias, não mudarão a dinâmica intergovernamental, porque os governos, em grande medida, representam as suas sociedades. O atraso do governo representa o atraso da sociedade na compreensão e enfrentamento dos problemas. Quando falamos da sociedade civil, estamos falando de uma sociedade minoritária, militante, consciente, muito preocupada com o bem público. Mas isso não representa toda a sociedade e a população mundial.
Para responder em síntese a essa pergunta, a construção de governança global ficou mais longe, porque foi uma conferência inútil do ponto de vista intergovernamental, a qual pode gerar cinismo, o pior que pode acontecer. Há pessoas conscientes que já não acreditam mais em nada e se retiram da vida pública. Do ponto de vista não governamental, dos diversos segmentos não governamentais, essa conferência aumentou a capacidade de rede, a capacidade de empoderamento de todos esses setores e fez aumentar, mesmo que lentamente, as forças que são reformistas na direção de uma sociedade sustentável em escala global.
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