Novo Código Florestal na estrutura agrária brasileira
Autor: Gerson Teixeira*
De um modo geral, os setores de esquerda “passaram batido” com a armadilha fundiária e territorial contida no novo Código Florestal aprovado pelo Congresso, fruto das articulações de alguns setores ambientalistas e do capital financeiro, com a reverência da bancada ruralista.
Trata-se dos desdobramentos sobre a estrutura agrária, da institucionalização do comércio de florestas para fins de compensação dos passivos de reserva legal até 2008, e da utilização de áreas protegidas – área de preservação permanente (APP) e reserva legal (RL) – no mercado de carbono, conforme os arts. 4º e 9º, da Lei de Mudanças Climáticas combinados com o art. 41, §4º, do novo Código. Em ambos os casos visam-se os mercados interno e internacional.
A partir da Lei, bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado estão habilitadas a operar no mercado mobiliário títulos de carbono e cotas de reservas ambientais (CRAs) que colocam principalmente a floresta amazônica brasileira com suas terras e biodiversidade, no circuito da globalização financeira.
Essa opção de política ambiental via o concurso de instrumentos de mercado tem sido denunciada por entidades da sociedade civil por institucionalizar a possibilidade da mercantilização e financeirização do patrimônio natural do país. Bens comuns do povo brasileiro poderão ser oferecidos como alternativa rentista para o capital especulativo internacional.
Além disso, a efetividade desses instrumentos repercutirá no agravamento das gigantescas anomalias da estrutura fundiária do país. E essa derivação do novo Código foi ignorada nos debates sobre a matéria até a presente data.
A demonstração dessa hipótese requer, antes, breve esclarecimento sobre esses novos “negócios verdes” que caíram como luva nas ideias da “economia verde”, defendida pelos países ricos na Rio+20.
Será possível, neste florescente comércio, eufemisticamente caracterizado como de prestação de serviços ecossistêmicos ou ambientais, ganhos financeiros cumulativos com operações com os dois títulos de crédito sobre uma mesma base física de negócio, isto é, sobre um mesmo imóvel rural. E parte correspondente dos títulos de carbono poderá estar sob o controle de uma empresa em Londres, e parte equivalente das cotas de reservas ambientais sob o controle de outra empresa na Ásia.
Estão elegíveis para o mercado de carbono as atividades de manutenção das APP, de Reserva Legal e de uso restrito, as quais, nos termos da nova legislação, configuram “adicionalidade” para fins do mercado de reduções de emissões certificadas de gases de efeito estufa.
As cotas de reservas ambientais serão lastreadas por área em regime de servidão ambiental; áreas excedentes às reservas legais; áreas de reserva particular do patrimônio natural; e áreas particulares localizadas no interior de unidade de conservação. Ademais, para compensar a agricultura familiar pelo recuo na dispensa da reserva legal, prevista no primeiro relatório do Código, a Lei autoriza a utilização dessas reservas no mercado de cotas ambientais. Significa que perto de 4,9 milhões de hectares de matas nativas da agricultura familiar poderão justificar a manutenção de área devastada igual até 2008, pelas grandes propriedades.
Sem dúvidas, haveria formas mais aceitáveis para o legítimo estímulo de práticas sustentáveis pela agricultura familiar.
O fato é que essas novas possibilidades de negócios tendem a blindar o latifúndio improdutivo da desapropriação para fins sociais pela subversão, subjacente, do princípio constitucional da função social da propriedade exigido dos imóveis rurais, no caso.
Com efeito, latifúndios improdutivos serão transformados em fábricas de carbono e em repositórios de reserva legal, o que lhes assegurará função produtiva e virtuosismo ambiental. Suponha-se um latifúndio improdutivo na Amazônia de 50 mil hectares, com toda a floresta originária preservada. O seu titular, proprietário ou posseiro, poderá fazer excelentes negócios no mercado de carbono em cima de 40 mil hectares, e os outros 10 mil hectares serão transformados em 10 mil cotas de reserva ambiental para compensar os passivos de reservas de outros imóveis.
Pergunta-se: esse latifúndio poderá ser desapropriado? Obviamente não, pois, a área como um todo, ainda que sem gerar um emprego ou sem produzir 1 grama de alimento ou de qualquer outro bem tangível estará prestando “relevantes serviços ambientais”; portanto, cumprindo a função social. O seu titular, talvez um grileiro, terá um upgrade moral: guardião ambiental! Observe-se que o art. 50 da Lei dispõe sobre as hipóteses de cancelamento das cotas de reserva ambiental, entre as quais, não figura a desapropriação.
Enfim, nem mesmo as mais atentas lideranças da bancada ruralista contavam com um “presentinho” de tal ordem, batalhado pelos chamados ambientalistas de mercado. Considere-se, ainda, o efeito na desorganização do mercado de terras. Os títulos em consideração, com direito reconhecido, terão na floresta lastro material. Como ficarão esses direito caso os titulares desses imóveis resolvam vendê-los? Ou não poderão fazê-lo?
Como vimos, por incluir a categoria “posseiros”, os instrumentos em apreço poderão servir para o “esquentamento da grilagem de terras” na Amazônia. Assim, é provável que num futuro próximo o IBGE finalmente informe sobre a posse e o uso dos milhões de hectares no Brasil, atualmente não registrados pelo nosso órgão de pesquisas geográficas.
Em suma, esse tema, de dimensão estratégica para o Brasil, tem sido ignorado nos debates do novo Código Florestal. A Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) articula aliados para um grande esforço político contra a efetividade de mais um golpe contra a reforma agrária no Brasil e contra a transformação do patrimônio natural do país em alternativa especulativa para o capital financeiro.
*Gerson Teixeira, engenheiro agrônomo, é presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária.
Artigo no Valor Econômico, socializado pelo ClippingMP.
Trata-se dos desdobramentos sobre a estrutura agrária, da institucionalização do comércio de florestas para fins de compensação dos passivos de reserva legal até 2008, e da utilização de áreas protegidas – área de preservação permanente (APP) e reserva legal (RL) – no mercado de carbono, conforme os arts. 4º e 9º, da Lei de Mudanças Climáticas combinados com o art. 41, §4º, do novo Código. Em ambos os casos visam-se os mercados interno e internacional.
A partir da Lei, bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado estão habilitadas a operar no mercado mobiliário títulos de carbono e cotas de reservas ambientais (CRAs) que colocam principalmente a floresta amazônica brasileira com suas terras e biodiversidade, no circuito da globalização financeira.
Essa opção de política ambiental via o concurso de instrumentos de mercado tem sido denunciada por entidades da sociedade civil por institucionalizar a possibilidade da mercantilização e financeirização do patrimônio natural do país. Bens comuns do povo brasileiro poderão ser oferecidos como alternativa rentista para o capital especulativo internacional.
Além disso, a efetividade desses instrumentos repercutirá no agravamento das gigantescas anomalias da estrutura fundiária do país. E essa derivação do novo Código foi ignorada nos debates sobre a matéria até a presente data.
A demonstração dessa hipótese requer, antes, breve esclarecimento sobre esses novos “negócios verdes” que caíram como luva nas ideias da “economia verde”, defendida pelos países ricos na Rio+20.
Será possível, neste florescente comércio, eufemisticamente caracterizado como de prestação de serviços ecossistêmicos ou ambientais, ganhos financeiros cumulativos com operações com os dois títulos de crédito sobre uma mesma base física de negócio, isto é, sobre um mesmo imóvel rural. E parte correspondente dos títulos de carbono poderá estar sob o controle de uma empresa em Londres, e parte equivalente das cotas de reservas ambientais sob o controle de outra empresa na Ásia.
Estão elegíveis para o mercado de carbono as atividades de manutenção das APP, de Reserva Legal e de uso restrito, as quais, nos termos da nova legislação, configuram “adicionalidade” para fins do mercado de reduções de emissões certificadas de gases de efeito estufa.
As cotas de reservas ambientais serão lastreadas por área em regime de servidão ambiental; áreas excedentes às reservas legais; áreas de reserva particular do patrimônio natural; e áreas particulares localizadas no interior de unidade de conservação. Ademais, para compensar a agricultura familiar pelo recuo na dispensa da reserva legal, prevista no primeiro relatório do Código, a Lei autoriza a utilização dessas reservas no mercado de cotas ambientais. Significa que perto de 4,9 milhões de hectares de matas nativas da agricultura familiar poderão justificar a manutenção de área devastada igual até 2008, pelas grandes propriedades.
Sem dúvidas, haveria formas mais aceitáveis para o legítimo estímulo de práticas sustentáveis pela agricultura familiar.
O fato é que essas novas possibilidades de negócios tendem a blindar o latifúndio improdutivo da desapropriação para fins sociais pela subversão, subjacente, do princípio constitucional da função social da propriedade exigido dos imóveis rurais, no caso.
Com efeito, latifúndios improdutivos serão transformados em fábricas de carbono e em repositórios de reserva legal, o que lhes assegurará função produtiva e virtuosismo ambiental. Suponha-se um latifúndio improdutivo na Amazônia de 50 mil hectares, com toda a floresta originária preservada. O seu titular, proprietário ou posseiro, poderá fazer excelentes negócios no mercado de carbono em cima de 40 mil hectares, e os outros 10 mil hectares serão transformados em 10 mil cotas de reserva ambiental para compensar os passivos de reservas de outros imóveis.
Pergunta-se: esse latifúndio poderá ser desapropriado? Obviamente não, pois, a área como um todo, ainda que sem gerar um emprego ou sem produzir 1 grama de alimento ou de qualquer outro bem tangível estará prestando “relevantes serviços ambientais”; portanto, cumprindo a função social. O seu titular, talvez um grileiro, terá um upgrade moral: guardião ambiental! Observe-se que o art. 50 da Lei dispõe sobre as hipóteses de cancelamento das cotas de reserva ambiental, entre as quais, não figura a desapropriação.
Enfim, nem mesmo as mais atentas lideranças da bancada ruralista contavam com um “presentinho” de tal ordem, batalhado pelos chamados ambientalistas de mercado. Considere-se, ainda, o efeito na desorganização do mercado de terras. Os títulos em consideração, com direito reconhecido, terão na floresta lastro material. Como ficarão esses direito caso os titulares desses imóveis resolvam vendê-los? Ou não poderão fazê-lo?
Como vimos, por incluir a categoria “posseiros”, os instrumentos em apreço poderão servir para o “esquentamento da grilagem de terras” na Amazônia. Assim, é provável que num futuro próximo o IBGE finalmente informe sobre a posse e o uso dos milhões de hectares no Brasil, atualmente não registrados pelo nosso órgão de pesquisas geográficas.
Em suma, esse tema, de dimensão estratégica para o Brasil, tem sido ignorado nos debates do novo Código Florestal. A Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) articula aliados para um grande esforço político contra a efetividade de mais um golpe contra a reforma agrária no Brasil e contra a transformação do patrimônio natural do país em alternativa especulativa para o capital financeiro.
*Gerson Teixeira, engenheiro agrônomo, é presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária.
Artigo no Valor Econômico, socializado pelo ClippingMP.
fonte: www.institutocarbonobrasil.org.br
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